Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, janeiro 23, 2007

Luiz Garcia - Galinho e raposão



O Globo
23/1/2007

Ao se iniciar a recente reunião do Mercosul, o presidente Lula enunciou uma premissa aparentemente óbvia: "Precisamos aceitar o parceiro como ele é, não tentar fazer o parceiro ser como a gente." Falava, claro, do presidente Chávez, da Venezuela.

O conceito não é original: se não falha a memória, numa fábula inédita de La Fontaine, o galo disse a mesma coisa quando se discutia o convite à raposa para um chá com bolinhos.

No fim do encontro no Rio, o discurso brasileiro já era diferente. Lula ofereceu ao presidente Morales, da Bolívia, um amplo pacote de investimentos, em óbvia tentativa de minar a influência da Venezuela no país. Pena que Morales não seja exatamente "como a gente": sua reação foi bem menos do que calorosa.

Por essa e outras, parece que o sonho do Mercosul está cada vez mais distante da proposta original de Brasil, Argentina e Uruguai. Ela incluí, e isso vem a propósito hoje em dia, a exigência de regimes democráticos nos países membros. Assim se produziu o milagre do fim da ditadura no Paraguai.

Formalmente, os possíveis novos membros do mercado comum são democracias, se isso for sinônimo de terem governos eleitos. Mas na prática, a Venezuela tem uma democracia peculiar - e o adjetivo é generoso.

O militar Chávez apareceu em cena como cabeça de um golpe de Estado que lhe custou alguns anos de cadeia. Libertado, e ajudado pela desmoralização da classe política local, acabou ganhando o poder pelo voto. Imediatamente colocou em prática um óbvio projeto de eternização no poder, com mudanças extraordinárias nas regras eleitorais.

No momento, ele cumpre mandato de seis anos, com possibilidade de quantas reeleições quiser - enquanto houver petróleo.

A oposição política é inepta e a mídia independente está sendo progressivamente asfixiada. Não é uma ditadura descarada como a cubana: apenas aquilo que mais se parece com ela no Hemisfério. Com a diferença de que Cuba, depois do fim da URSS, desistiu de seus projetos expansionistas. E Chávez aposta suas fichas na difusão pelo continente de um mal explicado tipo de socialismo, que chama de bolivarismo. Em homenagem a Simón Bolívar, aquele socialista fanático.

O tema central do bolivarismo é a denúncia do governo americano como responsável por tudo de ruim que acontece no continente. Inclusive dentro dos Estados Unidos: Chávez publicamente acusou o governo Bush de ter tramado e executado o atentado de 11 de setembro.

Formalmente, não é possível invocar contra Chávez a norma do Mercosul que exclui regimes não democráticos. Na prática, existe na Venezuela um regime populista, plebiscitário, que joga a classe política para escanteio e permite ao chefe do governo bater todos os pênaltis.

Os estatutos do Mercosul não impedem que a Venezuela venha a fazer parte do bloco. Mas só um otimismo míope pode levar Lula a considerar, como disse, que existe no continente "um clima favorável à integração".

Quando o galo diz isso, a raposa lambe os beiços. Ela tem uma definição muito pessoal do que seja integração.

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