O planeta, tentando agarrar-se ao que lhe resta de beleza, descobriu que não pode passar sem Tom Jobim
Ruy Castro
O único ausente na celebração dos 80 anos de seu nascimento, na próxima quinta-feira, 25 de janeiro, será o próprio Antonio Carlos Jobim. Essa ausência física - Tom morreu no dia 8 de dezembro de 1994 - terá de ser compensada pela onipresença de sua memória. Espera-se uma maratona de eventos, abrangendo shows, concertos, especiais de rádio e TV e lançamentos de CDs e DVDs, na impossível tentativa de resumir, em um dia, o significado de sua importância para a música popular brasileira e para o próprio Brasil. Em vida, Tom recebeu todas as homenagens possíveis, de uma infinidade de concertos comemorativos e eleições para halls da fama até títulos de doutor honoris causa dados por universidades e a que dizem que ele mais prezava: ter sido enredo de uma escola de samba (da Mangueira, no Carnaval de 1992). Mas o que lhe importava era o reconhecimento de sua música - e, com sua morte, intensificou-se o volume da produção em torno de sua obra. Nos 12 anos que desde então se passaram, ela já gerou mais produtos - discos, vídeos, livros, partituras, exposições, espetáculos, centros culturais, instituições de pesquisa - do que durante todo o tempo em que Tom esteve entre nós. Daí ser coerente que a maioria das homenagens em torno de seu 80º aniversário se refira menos ao oba-oba e mais à sua música, ferramenta pela qual ele enxergou o mundo e tentou transformá-lo.
Há muitos highlights na programação. Entre eles, conta-se a caixa de DVDs da Biscoito Fino, Maestro Soberano, com três discos temáticos dirigidos por Roberto Oliveira: Chega de Saudade, co-estrelado por um who's who da música popular e abrangendo momentos históricos da carreira de Tom; Águas de Março, narrado por Chico Buarque, mostrando sua relação com a natureza; e Ela é Carioca, narrado por Edu Lobo, sobre sua paixão pelo Rio - todos com imagens raras ou inéditas em vídeo, cedidas por sua viúva Ana Jobim. Os DVDs contêm interpretações de mais de 50 canções de Tom, por ele ou por outros grandes nomes, mas estão longe de esgotar até mesmo sua obra mais popular. É um desfile impressionante de melodias familiares, cada qual destinada a arrancar suspiros em escala nacional. Dificilmente um outro compositor brasileiro terá atingido um arco tão amplo de ouvintes, sem distinção de classe social e grau de educação ou de região do Brasil - quem não conhecer Gabriela reconhecerá Wave, e quem não se lembrar de nenhuma das duas saberá cantarolar Samba do Avião ou A Felicidade - citar Garota de Ipanema seria covardia.
Um Jobim menos conhecido, mas nem por isso menor, é o dos temas instrumentais, rearranjados por Mario Adnet no CD Jobim Jazz, saindo esta semana por seu selo Adnet Music. O título esconde à meia-máscara o conteúdo tão brasileiro do disco: trata-se de uma sucessão de sambas (Domingo Sincopado, Surfboard, Só Danço Samba), choros (Meninos Eu Vi, Bate Boca), valsa (Valsa de Porto das Caixas), frevo (Frevo de Orfeu), um misto de baião com maracatu (Quebra Pedra) e até um bolero (Sue Ann) - executadas por uma orquestra à base de sopros, mas que troca o ataque das big bands americanas por uma suavidade que, como sabe Adnet, era a preferida por Tom. Os intérpretes são músicos como Helio Delmiro e Romero Lubambo, violões; Marcos Nimrichter, piano e acordeom; Marcelo Martins, sax-tenor; Jessé Sadoc, flugelhorn; Neilor Proveta, clarinete; Vittor Santos, trombone; e vários outros, todos de primeira linha - a própria Joyce foi convocada para um simples, mas cristalino vocalise na faixa Paulo Vôo Livre. É muito chique. Adnet construiu esse Jobim jazzístico com o mesmo respeito e savoir faire com que, em parceria com Paulo Jobim, filho do homem, produziu há pouco o monumental Jobim Sinfônico, que já foi disco e concerto em São Paulo e no Rio.
Várias emissoras de rádio prometem especiais, e o da Rádio Eldorado, Hora Cheia, às 16h, virá coroar uma série de programetes produzidos por Vicente Adorno, que a emissora colocou no ar durante todo o mês de janeiro, três vezes por dia, com depoimentos preciosos sobre Tom. Há uma grande probabilidade, no entanto, de que todas as rádios brasileiras passem o dia tocando exaustivamente Jobim. A TV Globo também está com um programa na agulha, assim como a TV Cultura. No Rio, o Espaço Cultural Tom Jobim, que fica dentro do seu adorado Jardim Botânico, começou há um mês o “Verão do Tom” com a abertura da Casa do Acervo - milhares de partituras, manuscritos, entrevistas, desenhos, anotações, discos e vídeos referentes a Jobim, a maioria já disponível para consulta - e terá seqüência no dia 26 com uma série de oito shows no teatro do Espaço, com artistas ligados ao maestro. Etc etc etc.
Tom Jobim está por toda parte - na verdade, nunca saiu de cena. Quando se fala em Bossa Nova, Arpoador, Rio de Janeiro, Baía de Guanabara, Mata Atlântica e no que se espera do próprio Brasil, ele passou a ser uma referência. Sua frase, “O Brasil não é para principiantes”, tornou-se um tratado-pílula de sociologia, citado a três por dois, e ninguém mais se lembra de que ela ironizava o título de um livro, Brasil para Principiantes, escrito por um americano nos anos 50. “O Brasil é de cabeça para baixo”, ele também dizia, mostrando o dinheiro da época para provar. E, se os botos, urubus e matitas-perês passaram a ter alguma atenção dos conservacionistas, devem isso a Tom, que fez música sobre eles e nos ensinou a amá-los. Aliás, sua luta pela ecologia (iniciada em fins dos anos 60, quando a palavra ainda não era corrente) já não suscita má vontade nas redações - sim, houve um tempo em que os jornalistas evitavam Jobim porque ele “não sabia falar de outra coisa”. Hoje, se os jornais denunciam o desmatamento na Amazônia ou celebram a volta dos tatuís às areias de Ipanema, é muito por sua causa.
Embora mais famoso por suas criações na Bossa Nova (segundo Tim Maia, Garota de Ipanema só não foi gravada por D. Paulo Evaristo Arns), Tom compôs toda espécie de samba, choro, canção, valsa, modinha, seresta, toada, baião, frevo, embolada, coco e até bolero - promovendo uma verdadeira ocupação musical do Brasil e, a todos esses ritmos, imprimindo uma “bossa nova”. Foi o herdeiro e talvez o ápice de uma grande tradição de piano brasileiro, que começou com Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth, Villa-Lobos, Sinhô, Ary Barroso e Custódio Mesquita, por ordem de entrada em cena, e prossegue hoje com Francis Hime, Gilson Peranzetta, Wagner Tiso e tantos mais. Em 1967, quando aceitou o convite de Frank Sinatra, então o maior cantor popular do mundo, para gravar com este um disco de suas canções, Tom levou o Brasil com ele na bagagem - um país idealmente moderno, limpo, honesto, criativo. Um Brasil melódico, harmônico e rítmico, como a música que ele fazia e na qual o país deveria ter se espelhado.
A perenidade de suas canções não é apenas artística, mas também comercial. Neste momento, elas podem ser ouvidas na trilha da novela e nos comerciais mais inesperados - e, se a televisão não abre mão delas, é porque temos gente em quantidade no Brasil para merecê-las. É um bom sinal. E é provável que a música de Tom Jobim renda muito mais dinheiro hoje do que em vida de seu titular - por ser mais bem administrada e pelas novas mega-dimensões do mundo artístico. Ou porque o planeta, tentando agarrar-se desesperadamente ao que lhe resta de beleza, descobriu que não pode passar sem ela.
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