A contradição salta à vista: a democracia política expandiu-se nas últimas décadas, graças às densidades eleitorais crescentes, à multiplicação e pressão das entidades de intermediação social, mas o Estado brasileiro, mesmo se agigantando, oferece serviços essenciais cada vez mais precários e decadentes, a partir das demandas em áreas como segurança, saúde, educação e previdência. Os exemplos de inoperância se fazem ver, por exemplo, na instituição parlamentar, que abre os horizontes da nova legislatura sob o signo da mesmice, dando a entender que a representação política nada apreendeu a respeito dos sismos que devastaram a réstia de crença nos que detêm mandato popular. Pasma, a sociedade assiste ao triste espetáculo de escolha do candidato governista à presidência da Câmara dos Deputados, percebendo que a articulação para eleger para o cargo Aldo Rebelo, do PC do B, ou Arlindo Chinaglia, do PT, além de equivaler ao dito popular “trocar seis por meia dúzia”, escancara o mesmo naipe exibido no meio do mandato lulista, que entronizou o rei do chamado “baixo clero”, Severino Cavalcanti, de triste memória.
O Poder Legislativo, escreveu Rousseau, é o coração do Estado e o Poder Executivo é o cérebro que dá movimento a todas as partes, para concluir, de forma arrasadora: “O cérebro pode paralisar-se e o indivíduo continuar a viver. Um homem torna-se imbecil e vive, mas, desde que o coração deixa de funcionar, o animal morre.” A imagem é forte, mas os malfeitos sob o patrocínio do Parlamento sugerem que, há um bom tempo, vem ele se desvanecendo na cinza moral que cobriu formidável parcela de suas decisões no decorrer da onda de baixarias que o País vivenciou e que, pelo visto, ganha passaporte para continuar. Mais que o Executivo, o Poder Legislativo, por força do simbolismo, constitui o vetor de mudanças e aperfeiçoamento da institucionalização e da democracia. Terá, na legislatura que se inicia em fevereiro, rara oportunidade para limpar a montanha de entulhos que o encobre. O compromisso central deveria ser o de dotar a sociedade de mecanismos que lhe permitam exercer maior controle sobre a política e sobre o Estado. Aos políticos se impõe enterrar de vez o ciclo originado no ventre da ditadura, que nasceu com a concessão autoritária para existência de partidos e se desenvolveu com um oposicionismo monitorado, descambando, mais tarde, neste modelo de tutela de parlamentares, pagamento na boca do caixa, prostituição partidária, adensamento do patrimonialismo, inexistência de idéias e escrúpulos e, coroando o processo, a criação de um (esdrúxulo) parlamentarismo às avessas, caracterizado pela extravagante condição a que se permite o Executivo, qual seja, aplicar leis que ele mesmo institui por meio do abuso de medidas provisórias.
Este é o arcabouço que carece mudança. Se não se criar novo paradigma para a política, o País verá ampliadas as possibilidades de consumar o crime de viver sob o estigma de eterna corrupção. A propósito, se o índice de corrupção fosse 10% menor, a renda per capita brasileira poderia ser elevada em até US$ 3 mil no espaço de 20 anos. O dado, da Transparência Brasil, mostra o principal fator do atraso brasileiro, que nasce no seio da gestão pública e se espalha, como metástase, pelo corpo nacional, influenciando até o caráter do povo. Pois bem, lancetar o tumor é uma iniciativa que cabe, preliminarmente, ao sistema parlamentar, pela convicção de que a ética política se propaga pela ética no interior das próprias famílias e na esfera ampla das relações sociais. Se assim é, a próxima legislatura se vê diante de seu maior desafio na História contemporânea: propiciar os avanços. Uma agenda básica há de conter, na primeira página, a reforma dos costumes políticos.
A independência do Legislativo em relação ao Executivo, meta indeclinável de um conjunto de atores que substitui o poder das idéias pela disputa entre nomes, se estrutura sobre a qualidade partidária, que, por sua vez, depende de estatutos como a cláusula de barreira, abortada pelo Judiciário por inadequação constitucional. A chave do cofre do Palácio do Planalto manterá os parlamentares de pires na mão enquanto se mantiver o orçamento autorizativo, pelo qual o Legislativo apenas autoriza a realização de gastos pelo governo e este segue ou não o rito. O orçamento deve ser impositivo. Nos EUA, o Executivo fica a reboque, pois o orçamento é uma peça impositiva de gastos.
Estatuto mais que urgente é o da fidelidade partidária. O tempo de filiação de um deputado deve preencher o período eleitoral para o qual foi eleito (quatro anos), sujeitando-se o aventureiro que trocar de sigla a ficar fora do pleito seguinte. Para ganhar a confiança do eleitor o representante precisa estar mais próximo dele, e isso se consegue com a mudança do sistema de voto. Cerca de 80% dos eleitores não se recordam do voto dado para deputado nas últimas eleições. O sistema proporcional de lista favorece o personalismo. O ideal seria uma combinação entre os métodos proporcional e majoritário de listas. E por que não se pensar na possibilidade de o eleitor, indignado diante de eventual traição a compromissos, ganhar competência para destituí-lo por meio de representação (recall legislativo) à Mesa Diretora da Câmara?
Por aí se começa a avançar. O sistema previdenciário está na UTI. E, quanto à organização federativa, cláusula pétrea da nossa Constituição, sabe-se que é fator de permanente instabilidade. O desafio está em conciliar os interesses e obrigações das partes - Estados e municípios - com o todo, a Federação. Eis parte da agenda. Se Aldo Rebelo e Arlindo Chinaglia pensam algo sobre essa pauta, ninguém sabe. Fazem lembrar um pequeno conto: duas pessoas estão presas numa cela que tem apenas pequena abertura para o mundo exterior. Uma vê estrelas, a outra só o reflexo delas na lama. O que enxergam os nossos representantes?
Entrevista:O Estado inteligente
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