Entrevista:O Estado inteligente

domingo, janeiro 07, 2007

Gaudêncio Torquato A arriscada via da democracia direta

A arriscada via da democracia direta


Que Luiz Inácio não queira ser considerado líder “populista” é compreensível. Afinal de contas, o termo abriga conotações negativas, como demagogia, caudilhismo, centralismo e autoritarismo, e lembra, perto de nós, a polêmica figura do comandante venezuelano Hugo Chávez. Como o populismo se tornou referencial anacrônico na paisagem geopolítica contemporânea, Lula prefere ser reconhecido como presidente popular, na intenção de insinuar semelhanças (já o fez algumas vezes) com Juscelino Kubitschek, admirado por todos. De Getúlio prefere o viés nacionalista, rejeitando o toque populista do varguismo. E, como governante popular, promete se esforçar para fortalecer a democracia participativa, em reconhecimento à organização da sociedade, que incentiva a se fazer mais presente no processo decisório. As duas abordagens, feitas por ocasião da posse no Congresso Nacional, mostram por inteiro o conceito que o presidente tem de si: o estadista que paira sobre o bem e o mal, rejeitando enquadramentos, mesmo que a verdade, nua e crua, o desminta. Lula é uma personalidade-síntese dos contrários.

A inserção na esfera populista do ex-metalúrgico que assume pela segunda vez o comando da Nação não constitui força de expressão. Os fatos assim o demonstram. Um país como o Brasil, encaixado no rol de nações emergentes, podendo aparecer como uma das mais importantes do planeta, em duas ou três décadas, não aceita comportar estatutos como o populismo clássico, aqui entendido como a engenharia de artimanhas que o líder carismático estabelece para conquistar as massas, comunicando-se diretamente com elas sem a intermediação de partidos e corporações e esticando o cordão emocional por meio de práticas e políticas assistencialistas, que geram bons resultados eleitorais. Um fato é irrefutável: Lula incorpora trejeitos populistas. Carismático, entra direto no coração das classes mais carentes sem pedir licença a partidos ou a líderes. Tem repetido que não deve a eleição a ninguém, apenas ao povo. Critica acidamente as elites. Considera-se o pai dos pobres do século 21. Posiciona-se, do alto da onisciência, acima da esquerda ou da direita, que acha ultrapassadas. Mas abre concessões ao nacionalismo, na trincheira de lutas contra o privativismo - ao menos no plano retórico -, característica determinante de quem flerta com o populismo. Para arrematar, quer liderar a vanguarda do terceiro-mundismo, posicionando-se como artífice da redenção dos excluídos do mundo.

Os traços acima nem com muito boa vontade caracterizam o político popular. Nota-se, agora, um esforço para se afirmar como o governante de todos os brasileiros - um avanço em relação ao pronunciamento na posse de 2003 - e há consenso em torno da prioridade para atendimento preferencial aos mais necessitados. A contrariedade aparece quando os meios para tanto revelam tendência para um assistencialismo que fortalece a dependência das massas do Estado provedor. Por lógica, o governo deveria orgulhar-se em diminuir, a cada ano, os milhões de brasileiros atendidos pelo Bolsa-Família, o que seria debitado à inserção da população carente na economia. Se a administração aumenta a oferta de recursos, a conclusão é de que os pobres estão aumentando a cada ano. Para contrabalançar o caráter paternalista da âncora social, Lula acerta no alvo quando promete revolucionar o ensino básico, a partir do Fundeb. Esse, sim, é considerado tratamento adequado para construir a base da cidadania. Se for implantado corretamente.

Vejamos, agora, a democracia participativa do presidente. O conceito veio quando se referiu aos movimentos sociais, que terão mais vez e voz no segundo mandato. Um parênteses. No auge da crise do mensalão, quando vozes chegaram a pedir impeachment, a resposta foi clara: nos braços do povo, Lula passaria como um trator por cima do Congresso. O bafafá morreu no nascedouro. De lá para cá, a autoconfiança presidencial subiu às alturas. Mas a cabeça lulista não abandonou a idéia de contar com milícias populares, que acorreriam ao chamamento em caso de ameaça ao mandato. A história sugere tal conclusão. Ultimamente, a montanha de votos recebida e a crença de que será o maior estadista da história brasileira arquivam, pelo menos temporariamente, posturas que lembrem um clone chavista. Nem por isso, no entanto, deixará de adensar a articulação com a miríade de organizações sociais. Aqui reside o perigo. A democracia participativa não é solução para os problemas e imperfeições da democracia representativa. O povo, verdadeiro titular do poder, por este modelo, participa dos destinos do Estado. Se há inadequações, devem ser corrigidas.

Chega-se ao raciocínio: se a base governista se esgarçar ao longo do mandato, Lula se refugiará no escudo dos movimentos sociais? E se estes, entusiasmados com os mecanismos da democracia direta, passarem a exigir do governo avanços que estejam acima de sua capacidade? A democracia participativa defendida esquece os estatutos da Constituição que garantem sua efetividade, como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular. Trata-se de mecanismos postos à disposição do povo para decidir questões transcendentais da Nação. Destes ninguém fala. Nem mesmo o orçamento participativo, elaborado com sugestões de comunidades e implantado em algumas localidades, é lembrado. Por isso, a exclusiva referência aos movimentos sociais, destacando sua força para a democracia direta, pode ser vista como matiz do populismo presidencial. As sociedades modernas tendem a fortalecer seus núcleos organizativos. É até possível que Lula se queira transformar em líder popular e organizador de nossa democracia participativa. Mas há enorme distância entre o que homem diz e o que homem faz. A atitude dúbia é tática para agradar a gregos e troianos? Se assim for, compreende-se o fecho de Lula quando discursou no parlatório: “Deixem o homem trabalhar.” Claro, depois de umas boas férias.

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