Mal começado o ano ouvimos uma série de discursos, promessas e compromissos habituais para o período. Muito do que de novo se promete é velho. Não importa: é ato de fé. O que preocupa é o vazio que há em algumas dessas falas. Mas, deixemos passar, a retórica da boa vontade faz parte do ritual de passagem de um ano a outro. Registre-se que alguns discursos escaparam da retórica de praxe e disseram ao que vinham, indicando uma renovação de posturas. Foi o caso - e não o único - do novo governador de São Paulo.
De qualquer modo, no plano político, há que celebrar: a vitória da democracia. Bem ou mal, dependendo do gosto de cada um, o eleitorado escolheu seus dirigentes e ninguém está gritando contra a fraude ou se precipitando no antidemocrático “abaixo quem ganhou”. Não há dúvidas que caminhamos bastante. Basta ver os primeiros passos da ordem unida contra a violência que os governadores do Sudeste, independentemente de filiações políticas, começaram a ensaiar. Infelizmente, não se pode dizer o mesmo quanto à outra praga, a da corrupção, que simbolicamente foi abençoada pelos donos do poder: o responsável político direto maior pelo famigerado dossiê antitucano foi crismado em seu partido quando lhe entregaram novamente o bastão do comando. E alguns “aloprados” sumiram num passo de mágica. Os dois personagens diretamente ligados à campanha presidencial não foram sequer indiciados pela Polícia Federal. Resultado: para todos os efeitos, o responsável político por tudo foi o senador candidato ao governo de São Paulo, hoje quase obscuro no firmamento petista.
Na área das aspirações o presidente Lula continua imbatível. Ele deseja tudo de bom para todo mundo, sem esquecer os banqueiros, tão vilipendiados em sua retórica antiga. Agora, não: os 5% de crescimento do PIB darão pão para todos. Para os pobres, naturalmente, que já estão à mesa com a Bolsa-Família, mesmo sem emprego. E também para os ricos, pois somos todos irmãos e sem eles não haverá investimento e lá se vão os 5% de aumento do PIB. Só não entendo uma coisa: se for para sonhar, por que não imaginar logo um crescimento de, pelo menos, 10%?
Se sairmos do plano onírico, José Serra tem razão: a verdadeira questão é saber como escapar do embaraço da escolha paralisante entre estabilidade e estagnação. Não está escrito nos livros sagrados da teoria econômica nem na história dos povos que só se pode ter uma coisa ligada à outra, nem que sem estagnação a estabilidade se esboroa. O Brasil não cresce porque não se completou o arcabouço institucional para o País poder navegar no mar revolto das transformações econômicas mundiais. Isso deveria ser a preocupação obsessiva de quem tem as rédeas do governo federal, e não o cantochão lastimoso contra a racionalidade econômica, que predominou nas arengas presidenciais pós-reeleição.
Pior, agora o presidente mergulhou de chofre no passado que ele abominava: só o Estado-providência olha para os pobres. E quem o encarna, o presidente, tem a capacidade divinatória de corrigir as desigualdades criadas pelo mercado. E não gosta que se chame a isso de populismo... Nas boas doutrinas do passado em que ele acreditava, a sociedade civil existia e as diversas classes eram atores da história. Em sua crença atual tudo morre nos braços hercúleos do Estado. Na realidade não é assim: a sociedade não se resume ao Estado e ao mercado, e a opinião pública também conta.
Mas, cuidado, se a democracia representativa que temos consagra um presidente legítimo, não se pode dizer que o Congresso resulte de uma deliberação cidadã, no sentido forte da palavra. O sistema de voto desvincula o eleitor dos representantes e, portanto, se cria uma fragilidade institucional que, se hoje não é ameaçadora, amanhã poderá ser, pois enquanto a cultura democrática não se enraizar há risco de retrocessos.
São questões desse tipo, aparentemente desvinculadas da dinâmica econômica, que dificultam tomar o caminho correto do crescimento com estabilidade. O mercado contemporâneo necessita de regras claras e estáveis. As oscilações retóricas do presidente, ao lado da fome fisiológica de setores do Congresso e do desamor do povo a seus representantes, projetam sombras sobre o futuro. Falta mais cidadania, mais transparência, mais cobrança, mais respeito às regras do jogo. A democracia, essencialmente, é um conjunto de regras que devem ser estáveis, justas e críveis para serem aceitas e proveitosas. Sem elas não só o jogo político é instável como o mercado, receoso.
A pedra de toque da democracia é a cidadania ancorada na idéia de justiça: todos são iguais perante a lei. E isso não existe no Brasil. Quando se fala em segurança jurídica, fala-se, ao mesmo tempo, da segurança dos contratos - garantia que interessa ao mercado e a cada pessoa - e do respeito à igualdade dos cidadãos, que é o contrato básico, fundamento da democracia. Como pode o povo acreditar nas regras da lei (e como elas podem existir sem a crença do povo?), se os corruptos flagrados não perdem direitos políticos nem vão para a cadeia? Pois não houve recentemente um juiz que, em nome da justiça, deixou de condenar um ladrão de galinhas, dizendo que, se os grandes estão soltos, por que prender os pequenos? Na visão indignada deste juiz, ou há lei para todos ou não existe lei, mas arbítrio.
Ao se aceitar a não-punição do delito se está aceitando automaticamente a versão oposta à da política que reduziu o crime em Nova York: aceita-se, em nosso caso, a tolerância máxima. Busca-se igualdade e se chega ao oposto, ao vale-tudo, que beneficia os mais fortes.
É a persistência do Brasil patrimonialista, arcaico, onde vige o arbítrio dos poderosos (“quem pode pode, quem não pode se sacode” ou “para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei”, dos ditados populares) que impede, ao mesmo tempo, os avanços da democracia e a modernização da economia. A fórmula de que necessitamos para sair do impasse em que estamos é, simultaneamente, a de um “ativismo governamental”, como propôs Serra, que não se confunde com o estatismo do passado, somado à presença vigorosa dos cidadãos e ao respeito à lei. Só assim haverá mais crescimento e menos distorções do mercado e, portanto, mais igualdade.
Entrevista:O Estado inteligente
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