O Globo |
10/1/2007 |
Para quem pensa que o tempo é feito pelo relógio, estamos em janeiro de 2007. Mas outros entendem que o tempo parou. Como o Brasil, há um tempo "legal" (e linear); e um tempo "real", menos visível e certamente mais perturbador, no qual tudo se repete. Viramos o ano pelo calendário mas, moralmente, permanecemos em 2006. Tudo o que nos afligia no ano passado continua, embora as esperanças tenham se avivado com a promessa de que - quem sabe? - conseguiremos dosar o cuidar e o governar. Realmente, 2007 só vai dar as caras quando os eleitos chegarem à conclusão de que governar tem menos a ver com o tomar posse do cargo do que com os problemas nos vários setores da sociedade, esses problemas que a população experimenta na carne quando vai e volta do trabalho, quando é covardemente assaltada pelos bandidos, quando é impedida de se divertir, quando deseja matricular seu filho numa escola, ou quando precisa de atendimento médico. Aplaudo o governador Cabral quando ele usa o cargo para descobrir, em carne e osso, o drama dos doentes no Estado do Rio de Janeiro. Não vou clamar que os governadores devam estar na rua todo o tempo. Eles não são médicos, policiais, professores primários ou motoristas profissionais. Mas ninguém tem dúvida de que é preciso sair dos palácios! Que é necessário mostrar às vítimas das mais diversas catástrofes e sofrimentos a solidariedade humana dos seus dirigentes; o apoio daqueles que foram eleitos para liderá-los e num sentido muito preciso, levá-los - como fez Moisés - a algum lugar melhor, mais seguro, próspero e sereno. Que contraste existe no Brasil entre esse tipo de solidariedade e as promessas das campanhas eleitorais. Sempre fiquei perplexo ao constatar que Ronald Reagan e Mrs. Thatcher, a maior reacionária do século XX, visitaram mais hospitais, mais vítimas de catástrofes e mais aflitos em geral do que os políticos eleitos para cargos executivos por meio de agendas populistas ou pseudo-socialistas no Brasil. Lá, no mundo tocado pelo sujo e ultrapassado neoliberalismo, eles aparecem; aqui, os eleitos somem diante das aflições do "povo"... Seja por rasa mendacidade ou por estilo administrativo, esse gerenciar a coisa pública por meio da posse desinibida do Estado; seja porque o empossado cria sangue azul e não pode mais se expor ao universo igualitário das ruas, o fato é que - exceto nas inaugurações - o cidadão que sofre vê de tudo, menos os seus eleitos. Um dos fatos mais contundentes da cena política nacional é precisamente a desproporção entre o tamanho da desesperança, do desgoverno e do descaso administrativo (que chega ao ponto do colapso ou do apagão); e a presença do governante para, já não digo resolver, mas ao menos dizer que sabe do problema. Um dos sintomas da incúria gerencial e da irresponsabilidade eleitoral é, sem dúvida, a ausência do poder encarnado fisicamente ao lado do cidadão aflito, assegurando e dando prova de que o sofrimento passa e as coisas podem realmente mudar. Ora, quem é eleito não foi "colocado lá em cima" somente para desfrutar de um palácio, ter muitos empregados e vestir-se com esmero. Nem para fazer discursos inteligentes, nomear bons ministros ou elegantemente agulhar a oposição nos momentos apropriados. Nem mesmo o tal fazer boas coisas para o povo, cuidando dele, esgota esse papel de "representar" que contém acima de tudo, como me ensinou Thomas Mann, a dignidade, a honra e o privilégio de estar no lugar de todos. Ora, é esse tornar-se um emblema, paradoxalmente humano, concreto, singular e, ao mesmo tempo, abstrato da cidade, do estado e do país, que agrega a multidão individualizada e desigual, como um povo. É essa possibilidade de reunião num só papel, a ser vivido por uma só pessoa, que torna o representante, para além de todos os seus narcisismos, mais importante do que ele próprio. Pois a despeito dele mesmo, do seu orgulho, do seu sentido de destino, de sua consciência de sorte e de malandragem ele é, a um só tempo, a si mesmo e também os indivíduos dos mais diversos grupos sociais que o puseram lá. Ele é o seu partido, e também todos os partidos que perfazem o corpo eleitoral de uma nação; ele é o instrumento do seu próprio desejo, mas é também a vontade paradoxal do mais arrogante e do mais humilde dos seus eleitores. Mais: ele é, acima de tudo - daí a dignidade e a honestidade que acabam lhe enobrecendo os caminhos, e que eventualmente se chocam com o seu realismo político - aquele que temporariamente ocupa o lugar de todos: dos pobres e dos ricos, dos homens e das mulheres, dos adultos e das crianças, dos brancos e dos negros, dos vivos e dos mortos. Dos que se confundem com a tradição e com as datas que são o patrimônio comum. É esse "representar" que promove a consciência da comunidade nos seus anseios de bem-estar quando ele surge com ela e ao seu lado. É esse representar a todos que igualmente obriga a servir mais do que ser servido. Utopias? Penso que não. Creio que tem sido o esquecimento patológico dessas verdades a causa maior de estarmos à mercê da mendacidade que contamina a vida pública brasileira. |
Entrevista:O Estado inteligente
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quarta-feira, janeiro 10, 2007
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