São Paulo não dá paz ao bom senso. Mesmo quem consegue extrair da cidade o que ela tem de melhor é sempre lembrado, nada gentilmente, de como ela pode ser caótica e hostil. Por mais que muitos tentem, com insulfilms, seguranças, muros e consumos, não há como se isolar de seus males, o que o protagonista de Fogueira das Vaidades, de Tom Wolfe, recomenda a nova-iorquinos. A situação que ele vive no romance, um desvio no tráfego que o faz literalmente se defrontar com a mazela social, em São Paulo seria banal, corriqueira. Antigamente, de Euclides da Cunha a Paulo Francis, para conhecer o Brasil miserável ou abandonado - que os politicamente corretos insistem em chamar de “real” ou “profundo” - era preciso viajar, sair dos bolsões urbanos. Já um pedestre adolescente no centro de São Paulo nos anos 80, como eu, podia fazer um curso rápido de História da Incivilização Brasileira apenas abrindo os olhos.
Não é que não há nada a fazer; é que há muito a ser feito. Veja o caso das Operações Urbanas. Os projetos existentes apontam boas direções, ainda que alguns tenham caráter exclusivamente viário. Regiões seriam recuperadas; outras seriam desbravadas de forma mais controlada. Porque essa é a história de São Paulo - a história de um crescimento tão acelerado quanto desordenado. Regiões que enriquecem rapidamente como Vila Olímpia e Berrini não têm estrutura para suportá-lo; as ruas são estreitas, os serviços ruins, os acessos congestionados, as habitações inadequadas. Já as regiões que passaram de sua época áurea, como Brás, Mooca e Bom Retiro, não sabem como reaproveitar todos aqueles galpões industriais e descobrir outras vocações.
Mas os projetos quase não saem do papel, porque a Prefeitura não tem dinheiro - que tradicionalmente prefere gastar em obras caras e pouco úteis como o túnel da Rebouças - e a iniciativa privada não se organiza de modo que todos saiam ganhando. Mesmo os ganhos recentes do centro, como equipamentos culturais e parques, não parecem suficientes para reurbanizá-lo de fato. Além disso, caso idéias como essas dêem a sensação de que nos próximos 20 ou 30 anos é possível resolver parte dos problemas que deveriam ter sido resolvidos há 20 ou 30 anos, ainda resta a aflição: e os problemas que surgirão nos próximos 20 ou 30 anos? Como na Chicago de Saul Bellow, não há estabilidade: o passado tende a parecer apenas um futuro que foi perdido.
A tragédia da estação Pinheiros, da cratera de metrô cujas paredes desmoronaram tragando um microônibus e até uma senhora que caminhava desavisadamente pela Rua Capri, tem todos esses elementos do drama paulistano. O rio que foi retificado sem a devida reserva de permeabilidade, o transporte coletivo que deveria ter sido feito num entroncamento tão fundamental há muito tempo, a falta de fiscalização do poder público - esses são os males de longa data. Especialistas apontam erros na execução, como na monitoração do solo, provavelmente causados pela pressa em cumprir o cronograma (já que foi necessária uma mudança de método, o abandono do “tatuzão”). Os alertas foram ignorados, não havia plano de emergência e as autoridades levaram quase um dia para reconhecer a existência de vítimas (da “possível van”, detectada em GPS); o pior foi o empurra-empurra de responsabilidades, a vontade de culpar a chuva e debitar tudo na conta da “fatalidade”. Não à toa o paulistano ignora a noção de espírito público.
Fica difícil, assim, mostrar otimismo no aniversário da cidade. A paranóia não ajuda - ninguém precisa deixar de sair de casa agora, com medo de que o chão vai lhe faltar aos pés -, mas tem lá seus números... Quando lemos um livro como Planeta Favela, de Mike Davis (Boitempo), com suas descrições dos imensos bairros de periferia sem esgoto, sem um mínimo do que um dia já se chamou elogiosamente de “urbanidade”, para não mencionar as favelas controladas por milícias (de traficantes ou policiais), sabemos do que está falando, ainda que botar a culpa no tal “capitalismo globalizado” seja facilitar demais as coisas. Cada vez mais pessoas têm o sentimento, na boca do estômago, de que o “modelo” da metrópole, organismo de concreto que não pára de crescer, falhou.
Os “bolsonários” - os habitantes de bolsões que se julgam blindados, como se o melhor de uma cidade não fosse o convívio com classes, etnias e culturas diferentes - confundem a vida que conseguem levar com um discurso coerente sobre as qualidades de São Paulo. Sim, uma cidade grande como esta são muitas cidades, e a cidade que você vivencia entre essas pode ter o que celebrar. Acho até que é preciso deixar um pouco de lado essa consciência culpada que impede a exaltação do que se usufrui. Hoje eu queria ter escrito, digamos, sobre os carvalhos de Higienópolis, meu quinhão diário de repouso visual. Ainda o farei. Se fosse, porém, elogiar iniciativas como o aterramento de fios na Rua Oscar Freire ou a despoluição publicitária do prefeito Gilberto Kassab, teria de acrescentar o mais comum dos apostos paulistanos, “apesar dos pesares”, pois rua de pobre continua tendo só gambiarras e pichações. Podemos justificar por que vivemos em São Paulo; difícil é justificar São Paulo.
RODAPÉ
A São Paulo em que nasceu Anita Malfatti, tema de boa biografia recém-lançada de Marta Rossetti Batista (Editora 34 e Edusp), era incrivelmente provinciana e, ao mesmo tempo, promissora. Anita, também. Eu sabia pouco sobre sua vida pessoal, como o defeito de nascença na mão direita, que a fez aprender a usar a esquerda - o que torna mais admirável a qualidade de seu desenho. Eu também não tinha consciência do quanto era religiosa, mística mesmo. A biografia, felizmente, está mais concentrada na obra, com pesquisa admirável; apenas o texto peca pelo excesso de citações, notas de rodapé (quase todas as páginas têm pelo menos uma) e subdivisões.
Ela chegou à Alemanha num momento cultural privilegiado, em 1914, com as cidades fervendo de vanguardas, e começou a assimilar o que não tivera chance de ver no Brasil, como o fauvismo, o cubismo e sobretudo o expressionismo. Muitas telas suas lembram nitidamente a de outros, como Van Gogh, Cézanne, o Picasso da fase azul, os expressionistas Nolde, Jawlensky ou Munch, além de seu professor, Lovis Corinth. Mas, ironicamente, nunca foi a fundo em nenhum desses estilos. Digo “ironicamente” porque Monteiro Lobato escreveu artigo famoso em 1917 atacando-a por essas “distorções” que chamou de cubistas, embora Anita nunca tenha sido cubista, como tampouco abstracionista. Atribuir a Lobato sua prematura decadência, portanto, é injusto.
Na realidade, ela não encontrou seu estilo, mesmo que num registro derivativo. Suas melhores telas são desse período, especialmente retratos de um tímido expressionismo como O Homem Amarelo e A Boba, e já em 1921, antes da Semana de Arte Moderna, começam a perder qualidade. Ainda que o modernismo paulista em geral fosse conservador em relação ao europeu (Mário de Andrade, promotor maior de Anita, logo pregaria a “volta ao clássico”), Brecheret e Lasar Segall tinham linguagem mais própria, com forte identidade; Tarsila era mais original, ainda que ligada ao estilo de Léger. Talvez por personalidade, Anita nunca soltou as cores, ou encontrou sua combinação com as linhas. Como na literatura, seria fora de São Paulo que a arte moderna teria seus maiores exemplos.
LÁGRIMAS
Bento Prado Jr., professor de filosofia, maior estudioso brasileiro de Bergson; Léo Gilson Ribeiro, jornalista e crítico, admirador de primeira hora de Hilda Hilst; Ray Güde Mertin, agente literária alemã, divulgadora apaixonada da ficção brasileira do passado e do presente. O pequeno mundo letrado nacional ficou menor ainda.
Art Buchwald, por sua vez, deixa o mundo menos engraçado. Era um colunista que não se interessava em fazer piadas para provocar o riso fácil do leitor, mas que o fazia pensar, na tradição satírica de Jonathan Swift. Ele acabou com Ronald Reagan, em seu lendário espaço no Washington Post, e com todos os presidentes. (Ainda bem que não veio para o Brasil, senão iam querer extraditá-lo.) Uma vez, no hospital, notou que todo mundo manda os outros para o inferno, mas ninguém manda ninguém para o paraíso. Vá para lá, Art.
POR QUE NÃO ME UFANO
Os economistas que se dizem “desenvolvimentistas”, sempre ansiosos para desenvolver suas carreiras em cargos estatais, vivem repetindo que cortar gastos públicos é um absurdo, que milhões de carentes necessitam do Estado no Brasil (e que poderiam dizer dele, como Woody Allen da posteridade, “Por que devo fazer alguma coisa para ela? O que ela fez para mim?”) e que, portanto, não se pode reduzir a carga tributária, o que tiraria capacidade de investimento da máquina. O que eles não notam é que o Estado não pára de enriquecer - R$ 392 bilhões de arrecadação no ano passado - enquanto a sociedade está estagnada. Ele pode, sim, e deve abrir mão de impostos para permitir que a economia cresça e, mais adiante, recomponha a receita.