Entrevista:O Estado inteligente

domingo, janeiro 14, 2007

DANIEL PIZA

Tão triste como Onetti


Há alguns dias, antes de o sol voltar a tomar conta de tudo com sua costumeira indelicadeza, enquanto a garoa incessante do início do ano tamborilava na folhagem do jardim, entre uma música de Tom Waits e outra do Madredeus, cantada por essa extraordinária Teresa Salgueiro que está fazendo show em São Paulo, tive a companhia perfeita dos 47 Contos de Juan Carlos Onetti (Companhia das Letras). Não os conhecia, apesar de minha admiração pelos romances A Vida Breve e Junta-Cadáveres. A literatura de Onetti - como a de outro uruguaio que me encantou mais recentemente, Felisberto Hernandez - é triste, diferente e exigente; logo, imagino que não agrade a todos os leitores, assim como Angústia, de Graciliano Ramos, livro cujos 70 anos mal foram lembrados em 2006, é amargo demais para muitos paladares.

No começo, os contos de Onetti (1909-1994) parecem romances que não se desenvolveram; em alguns, nem entendemos direito o que se passa. Mas, principalmente a partir de 1941, com Um Sonho Realizado e Bem-Vindo, Bob, ele emenda uma série tira-fôlego de pequenas obras-primas - e acentuo 'pequenas' porque raros textos ultrapassam 20 páginas. São uns oito ou nove que foram escritos até o fim dos anos 60, o que dá uma média de quase dois anos para cada conto, pois o livro é uma reunião completa. No excelente prefácio, Antonio Muñoz Molina comenta a sensação de que essas criações, como os retratos de Velázquez ou o piano de Bill Evans, existiriam mesmo que não houvesse ninguém para testemunhá-las. É como se flagrássemos os personagens de Onetti no meio de sua vida e, sem ser apresentados formalmente ao seu passado, logo partilhássemos seu estado de espírito - como, acrescento, nas pinturas de Edward Hopper. A sensação segue conosco muito depois que fechamos o livro.

Isso se cria, antes de mais nada, por sua habilidade descritiva, que vai muito além do registro visual. Na abertura de A Face da Desgraça, o narrador conta como uma garota de bicicleta passa ao longo da praia, pára, senta, tira as sandálias, penteia 'descuidada' o cabelo e, depois de se calçar e levantar, se vira para ele: 'Olhou-me com uma expressão desafiante enquanto seu rosto ia se perdendo na luz escassa; olhou-me com um desafio de todo o seu corpo desdenhoso, do brilho niquelado da bicicleta, da paisagem com chalé de telhado suíço e ligustros e eucaliptos jovens de troncos leitosos. Foi assim por um segundo; tudo o que a rodeava era segregado por ela e por sua atitude absurda.' Pela arte da escolha de palavras e ritmo, a cena banal traduz o que homens de qualquer latitude sentiram ou sentiriam em situação semelhante. No final do conto, como o título sugere, a descrição, igualmente minuciosa, será sobre algo bem menos vital...

Quase sempre é entardecer nos contos de Onetti. Também chove muito. As mulheres, tão admiráveis em sua capacidade de insatisfação, nunca estão apenas onde estão. Em Esbjerg, na Costa, a dinamarquesa relembra para o companheiro, Montes, o cheiro das árvores e o tempo do degelo em sua cidade natal, e sua voz baixa - 'com essa música que as pessoas fazem sem querer quando estão rezando' - o comove justamente por ser 'aquilo que vinha da parte desconhecida dela'. Em O Álbum, a mulher conta para o narrador histórias de aventuras distantes e lhe explica que 'só é chuva a que cai sem utilidade e sem sentido'. E em Tão Triste como Ela, história que faz jus ao título, a protagonista observa um dos homens que cavam a piscina até que, 'quase feliz no centro exato da solidão e do silêncio', toma um gole de conhaque e decide abordá-lo. A tragédia final não é narrada com menos suavidade.

Como nos romances, os personagens estão todos desprotegidos, e tanto mais se percebem assim quanto mais buscam se proteger. Em Santa María, a cidade murada que Onetti inventou e reaparece em toda sua obra, a paz tão prezada - como a crença de que as versões locais dos grandes artistas europeus e americanos se equivalem a eles - não passa de letargia diante das imbecilidades alegres da televisão. 'O crime, o pecado, a verdade e a frágil loucura não podiam nos atingir', diz em A Noiva Roubada, para em seguida acrescentar a imagem inesperada, 'não se arrastavam entre nós deixando, para injúria ou lucidez, uma fina, trêmula baba de prata.' E, no entanto, por trás de tantas vidas desencaminhadas, sentimos o interesse profundo do escritor pelas pessoas - e isso é, ou deveria ser, tudo que precisamos para seguir.

Dá até vontade de dizer, como Tolstoi sobre as famílias, que as obras de arte felizes se parecem; cada obra de arte infeliz é infeliz à sua maneira. Acostumado a finais felizes ou expiatórios, o público se afasta das obras de arte tristes porque buscam terapia, consolo, distração, só as admitindo como mensagem; não vêem que na própria exploração da linguagem - não no sentido de abuso, mas no de aventura - está a 'chama afirmativa' do autor, e que observar o mundo é seu combustível. A tristeza de Onetti, numa alquimia irônica que ele mesmo apreciaria, nada mais é que o prazer do leitor.

LÁGRIMAS

Depois de Pierre Vidal-Naquet, morto no ano passado, eis que Jean-Pierre Vernant se vai, aos 93 anos. O maior helenista das últimas décadas soube combinar interpretação material e simbólica e mostrou como o pensamento racional e o religioso se confundem na mentalidade grega antiga, ao contrário da visão tradicional da lógica em oposição à mitologia. Li com especial prazer Mito e Tragédia na Grécia Antiga, co-autoria de ambos, publicado no Brasil pela Perspectiva. Outra lágrima para Carlo Ponti, aos 94, que produziu filmes como A Estrada, de Fellini, Blow Up, de Antonioni, e Doutor Jivago, de David Lean. Precisa dizer mais alguma coisa?

CADERNOS DO CINEMA

Happy Feet e Por Água Abaixo são bons filmes infantis, não à altura de Shrek, Monstros S.A. ou Procurando Nemo. O primeiro é uma história ao estilo patinho feio musical e ecológico. O pingüim que não sabe cantar mas sabe dançar precisa mostrar à comunidade tradicional que a diferença é o que importa e, para tanto, tenta salvá-la da escassez de peixes gerada pelo pior dos predadores, o homem. A história é fraca; a narrativa, quase uma seqüência de clipes, com números de dança que não funcionam. Mas a produção é primorosa: as geleiras e o mar parecem filmados em documentário. Por Água Baixo é mais cheio de idéias visuais e/ou cômicas. A descida do ratinho da cidade ao mundo dos esgotos também é uma trama clássica, mas ela fica em segundo plano diante das sacadas em série. Os filmes infantis anglófonos de hoje não têm drama, como tinham os de Walt Disney, mas são comédias de primeira.

ANATOMIA DA TIRANIA

Quem ainda acreditava que Chávez fosse um populista 'light', democrata, deve ter sentido um frio na espinha nos últimos dias. Ele quer reeleição 'indefinidamente' e promete 'socialismo o muerte'; ou seja, o socialismo do século 21 que propõe não passa de socialismo com face eleitoral. Já reduziu o Congresso venezuelano a um partido único e continua estatizando e nacionalizando o que puder. Agora pretende centralizar ainda mais poder, tirando força das eleições municipais. E como Fidel Castro, a quem dá mesada em petrodólares, não consegue subir ao púlpito e falar por menos de três horas.

Pobre de um mundo que se divide entre Bush e Chávez...

POR QUE NÃO ME UFANO

Por falar no capitalismo estatizado e tosco do Brasil, o governo Lula acaba de reabrir a Sudam e a Sudene, o que Alckmin também dizia que faria. José Sarney e Jader Barbalho, respectivamente donos das capitanias do Maranhão-e-Amapá e do Pará, já estão de olho na Sudam, assim como o petista Jorge Viana, do Acre. Com a Sudene não deve ser diferente. Baseadas nos pensamentos 'desenvolvimentistas' de Celso Furtado, essas autarquias sempre foram objeto de furto de nobres políticos. Fizeram muito pouco por suas regiões, que continuam a sofrer com falta de educação e de infra-estrutura (saneamento, irrigação, transporte, etc).

É verdade que são regiões que exigem atenção especial, envolvimento mais direto do Estado em ações que as tirem da economia de subsistência e tornem mais produtivas e democráticas. Mas também está claro que isso não se resolve colocando verbas nas mãos dessa gente e da burocracia. Quem não se recorda do ranário milionário da madame Barbalho, que para nós só rendeu rimas? O mesmo dinheiro poderia ir para pesquisas sérias, como as da Embrapa, mas esse governo acha que pesquisa é coisa da 'zelite'.

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