Entrevista:O Estado inteligente

domingo, janeiro 14, 2007

FERREIRA GULLAR

A Justiça tarda


O advogado pediu-lhe mais paciência; não valeria a pena aceitar qualquer proposta

ZÉ PAULO trabalhava na sala de imprensa de um instituto do governo, quando se deu o golpe militar de 1964. Nascido de uma família getulista, simpatizava com o presidente João Goulart e, no sindicato, participava de manifestações de apoio ao governo, especialmente depois que a crise se agravou e o fantasma do golpe militar tornara-se uma ameaça real.
Na noite do dia 31 de março, quando já as tropas do Exército haviam se rebelado em Minas Gerais, reuniu-se com alguns companheiros no sindicato para ver se era possível colaborar na defesa do presidente da República. Sua esperança desvaneceu-se quando o rádio informou que o general Kruel, comandante do 2º Exército, sediado em São Paulo, aderira ao golpe. Na manhã do dia 1º de abril estava tudo consumado. Zé Paulo jurou que não se submeteria aos militares instalados no poder.
Fez o que pôde. Participou de reuniões, colaborou na organização da resistência à ditadura, desenvolveu atividades clandestinas, até que um dos membros da organização foi preso e, sob tortura, entregou os companheiros. A Zé Paulo não sobrou outra alternativa que passar à clandestinidade e, depois, exilar-se.
Seu exílio durou quase dez anos. De volta ao Brasil, desempregado, decidiu recuperar o seu emprego na sala de imprensa do instituto. Como havia sido demitido por abandono de emprego, alegou que, na verdade, fora obrigado, pela repressão da ditadura, a deixá-lo. Seus argumentos foram aceitos, foi reintegrado no emprego, mas não lhe concederam o pagamento dos salários durante o tempo em que esteve afastado.
Seu advogado entrou com uma ação que foi vitoriosa na primeira instância, mas o governo recorreu. O julgamento em segunda instância demorou anos. Perguntou ao advogado se não podia solicitar ao juiz que desse uma decisão.
- Você está maluco. Se eu fizer isso, aí é que ele não decide e, se decidir, será contra nós.
- Mas faz quatro anos que o processo está com ele.
- E pode ficar mais quatro. Não há nada a fazer, senão esperar.
Zé Paulo se conformou. Terminou esquecendo o processo. Finalmente, aposentou-se no instituto, ganhou netos, viajou à Europa, operou a próstata, mudou-se para um sítio em Nova Friburgo. Um belo dia, recebeu um telefonema de Brasília, de uma amiga que trabalhava no STJ.
- Você acaba de ganhar a ação contra o instituto!
Emocionado, ligou para o seu advogado:
- Ganhei mesmo?
- Ganhou. Não cabe mais recurso.
- E quando eu recebo a grana?
- Bem, isso ainda demora... Vão ter que pedir ao instituto que informe quanto você ganhava na época, para calcular quanto deve receber.
Foi feita a solicitação ao instituto que, um ano depois, não havia mandado as informações. Por sorte, Zé Paulo, em conversa com uma amiga, soube que ela era parenta do atual presidente do instituto e, assim, em poucas semanas, as informações estavam nas mãos do juiz, que as encaminhou ao técnico para os cálculos.
Feitos os cálculos e entregues ao juiz, ele demorou dois anos para escrever, no processo, a seguinte frase: "Encaminhe-se à Advocacia Geral da União".
A essa altura, Zé Paulo já ganhara o primeiro bisneto. Como a vista foi ficando turva, teve que fazer operação de catarata no olho direito e, um ano depois, no esquerdo. Um belo dia o advogado lhe telefonou:
- A Advocacia Geral da União rejeitou os cálculos.
- Como assim, não foram feitos por um técnico?
- Isso não importa.
- Escute, diga à Advocacia Geral da União que, a esta altura, aceito qualquer cálculo, a quantia que considerarem justa. Não agüento mais!
O advogado pediu-lhe mais paciência. Não valeria a pena aceitar qualquer proposta, uma vez que, mesmo assim, a coisa não se resolveria logo. Explicou-lhe que, definida a quantia exata que deverá receber, a ordem de pagamento será encaminhada ao Congresso para ser incluída, como precatório, no Orçamento do ano seguinte. Se chegar depois, terá que esperar mais dois anos.
- E aí então será pago?
- Deveria ser, mas, de alguns anos para cá, o governo não paga os precatórios ou paga quando quer.
- Deixa ver se estou entendendo. Passo 29 anos pelejando na Justiça e, depois que ganho, o governo não obedece à decisão judicial, não me paga e fica por isso mesmo?
- É, a menos que você tenha um pistolão nas altas rodas de Brasília.
- Para que então existe a Justiça neste país?
- Será que existe?

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