Entrevista:O Estado inteligente

domingo, janeiro 07, 2007

Daniel Piza

Ah, o capitalismo


Mario Covas falava em 'choque' de capitalismo. Como assim, choque? Parece que o capitalismo é algo que se transmite de forma dolorosa e passageira. Fernando Henrique Cardoso volta e meia diz que o problema do capitalismo é que ele produz desigualdade social. Bem, até onde se sabe, foi nos países capitalistas que mais se conseguiu reduzir a pobreza. Mesmo José Serra, com seu ideário neokeynesiano - ainda que Keynes tenha sido sempre um defensor do capitalismo -, não parece assimilar o dinamismo e a internacionalização do mercado atual, como quando propôs uma 'lei de responsabilidade cambial'. Não espanta que nos oito anos de governo tucano, apesar das privatizações e da política monetária, o Estado brasileiro tenha seguido firme em sua trajetória de inchaço, que arrocha em especial a produtividade e a classe média.

O problema, claro, não é só dos tucanos. É também de seus imitadores da hora, os petistas lulistas, que igualmente apostam todas as fichas na parelha entre tecnocracia (cautela excessiva na política de juros, superávit primário à custa do congelamento de verbas, etc.) e o que se poderia chamar de afetocracia (a política social que dá mais ênfase à mesada que ao emprego). Imitadores quase sempre são piores que seus modelos, mas, no fim das contas, o Brasil segue no balanço do aumento contínuo de impostos com a lenta melhora de índices sociais. O Estado gasta tudo em juros, pensões e assistencialismo; enquanto isso, as estradas federais, ao contrário das privatizadas, batem recorde no número de mortes durante os feriados de fim de ano. O governo FHC IV - ou Lula II - acaba de começar e já está condenado à mesma equação. Na verdade, não sabe e nem consegue destravar o crescimento do PIB.

Há um anseio mais ou menos generalizado por uma vaga social-democracia tupiniquim, o que é a melhor explicação para a continuidade de Lula no poder. Mas na hora de bolar e executar idéias ninguém sabe direito o que ela seria. A social-democracia propriamente dita, dos países escandinavos, funciona com cargas tributárias de 40% ou até mais, mas eles são capitalistas em todos os sentidos: são as economias mais abertas do mundo e não fazem obstáculo aos investimentos financeiros. Só que, por serem nações pequenas, instruídas e homogêneas, conseguiram organizar melhor os serviços sociais, sem fazer distinções entre 'elite' e 'necessitados'. O Estado não é uma mãe; é uma instituição, tão impessoal e eficiente quanto possível. A social-democracia brasileira, que cobra mais impostos do que os países mais ricos do mundo, EUA e Japão, está muito distante disso. O nosso é um capitalismo estatizado, tosco, culturalmente fundado na noção de lucro como pecado.

Na classe intelectual, que inclui alguns dos políticos citados ou seus amigos mais influentes (Paul Singer, guru do PT na economia, chega a dizer que cortar gastos públicos é 'conservador', como se não fosse justamente ir contra toda a tradição brasileira), o mesmo medo da democracia liberal moderna é evidente. Apesar do trabalho de alguns autores - por exemplo, historiadores como Evaldo Cabral de Melo, José Murilo de Carvalho e Marco Antonio Villa -, ainda há muito o que consertar dos estragos deixados pelo marxismo acadêmico. Afinal, estamos num lugar onde a tese de que a obra de Machado de Assis é uma crítica ao capitalismo tem status inabalável. Mesmo os dois grandes teóricos da brasilidade, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, que não eram marxistas, não disfarçavam seu incômodo com o futuro capitalista. Era como se o Brasil dos anos 30 fosse ou devesse forjar um tipo híbrido de regime.

O relativo sucesso do capitalismo nas regiões que o compreenderam vem do fato de que, ao contrário do fascismo e do comunismo que conquistavam mentes no início do século passado, ele não foi projetado em uma prancheta. Ninguém se sentou e concebeu o capitalismo como um sistema que daria fim a todos os males da humanidade. Por isso seu sucesso é sempre 'relativo'. Ele foi se desenvolvendo; aqueles que o aceitaram foram os mesmos que perceberam que ele exige estar sempre em correção, vigiado, oxigenado pela pressão democrática de sindicatos, ambientalistas, imprensa e toda a sociedade. Um antigo bordão dizia que o capitalismo é incorrigível. Não, o que ele justamente tem de melhor é ser corrigível - para os que adquirem consciência.

RODAPÉ (1)

A biografia Roberto Carlos em Detalhes, de Paulo Cesar de Araújo (Planeta), é desde já o melhor livro disponível sobre o cantor. Ele realmente faz jus ao título: narra o acidente de infância, as tentativas de sucesso, o surgimento da Jovem Guarda; e esclarece, por exemplo, como Roberto e Erasmo Carlos compõem realmente em parceria (na letra como na música). Mas há alguns problemas. Alguns de edição, como a falta de discografia e índice remissivo. Outros de texto, pois Araújo repete informações e às vezes comete desleixos (ora usa 'pra', ora 'para'). A segunda metade do livro perde o foco da cronologia, ainda que o Roberto Carlos dos anos 70 para cá não tenha o mesmo interesse. E o principal: não vê defeitos no biografado. Roberto Carlos, o 'rei', é descrito como se fosse o Pelé da MPB.

Há, claro, muito sobre o que refletir. Minha impressão foi a de que Roberto Carlos nunca deixou de ser o cantor que começou cantando boleros e sambas-canções. Foi influenciado por João Gilberto, mas nunca assimilou o requinte harmônico da bossa nova; flertou com o rock balada, só que jamais ousaria em atitude e sonoridade como os Beatles. Curiosamente, fez as melhores canções - Nas Curvas da Estrada de Santos, Sentado à Beira do Caminho e Sua Estupidez - todas no mesmo ano, 1969, depois de Chico Buarque e os tropicalistas abrirem nova fase para a MPB. A partir de Detalhes, no início dos anos 70, voltou a ser o romântico que sempre foi, cujo segredo é combinar melodias açucaradas com interpretação enxuta.

RODAPÉ (2)

O 'empréstimo' que Ian McEwan, autor do belo romance Reparação, fez de trechos - algumas frases são literalmente copiadas - da autobiografia de uma enfermeira, é lamentável, embora mais comum do que se imagina, inclusive entre grandes escritores. Isso não se faz, ponto. Mas que ele é um desses grandes escritores não resta dúvida, como de novo se atesta no conto publicado pela revista The New Yorker de final de ano, On Chesil Beach. É uma narrativa característica de McEwan: na descrição minuciosa dos primeiros dias de lua-de-mel de um casal na praia vão sendo enxertadas reflexões sobre o casamento, a pressão familiar para que ele ocorresse e, ao mesmo tempo, a liberdade até mesmo em relação a essa pressão.

O número especial da New Yorker traz também o discurso de recebimento do Nobel por Orhan Pamuk, uma concisa elegia a seu pai, com frases como: 'Eu gostaria de me ver como parte da tradição de escritores que - onde quer que estejam no mundo, Ocidente ou Oriente - se destacam da sociedade e se fecham em seus quartos com seus livros; este é o ponto de partida da verdadeira literatura.'

ZAPPING

Depois de ver os dois primeiros capítulos de Amazônia, a sensação é que Glória Perez está tentando fazer o que Maria Adelaide Amaral domina: uma espécie de romance histórico, uma telenovela concentrada com personagens reais. Mas aparentemente a maioria das cenas será para os relacionamentos amorosos, e uma minoria para a exploração dos seringueiros. Só no primeiro capítulo Galvez (José Wilker) teve duas mulheres e um duelo. O folhetim dá o tom, emoldurado por panorâmicas da floresta previsivelmente acompanhadas de Villa-Lobos.

PARA CÁ DE BAGDÁ

O ano que teve tantas mortes de tiranos terminou com o enforcamento de mais um, Saddam Hussein, órfão de pai, nascido no interior, pseudo-intelectual, orgulhoso e antimoderno, que queria ser o Stalin de Bagdá e promoveu execuções e genocídios e ampliou seu poder usando a ameaça de inimigos externos. Mas sou contra a pena de morte e também acho que ele, como Milosevic, deveria ter sido processado em tribunal internacional pelos crimes contra a humanidade. Mas os erros dos EUA no Iraque - um país que não é nação, cujas fronteiras apenas criam mais conflito entre sunitas e xiitas - são tantos que até os conservadores já enxergam.

POR QUE NÃO ME UFANO

Por falar em conservador, Lula se revela cada vez mais um dos arraigados. Sua classificação dos atentados no Rio na semana passada como 'terrorismo', que exigiria nova legislação, lembra retórica de caserna. Também é detestável que o governador Sergio Cabral e ele usem a ocasião para reforço político da aliança entre PT e PMDB. Não há dúvida de que o crime organizado descobriu a tática de guerrilha urbana, à maneira colombiana. Mais do que tanques nas favelas, porém, o que muda a situação é investimento em inteligência, em combate à corrupção policial, em vigilância do narcotráfico, em presídios federais decentes. Tudo que o governo Lula, como os estaduais, não fez até agora.

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