Há uma semana, parecia que o risco maior da reunião de cúpula do Mercosul encerrada ontem não passasse de um megadesfile de egos e de produção de espuma oratória. Mas ocorreu algo mais importante e mais perigoso.
O Mercosul corre o risco de se tornar um clube geopolítico cujo principal objetivo não é mais a integração e econômica, mas enfrentar politicamente o detentor do maior mercado consumidor do mundo, os Estados Unidos.
Como não encontrou resistência, o presidente venezuelano, Hugo Chávez, assumiu a liderança no processo de metamorfose do bloco. Não esconde que seu objetivo é 'descontaminar o Mercosul do neoliberalismo'. O chanceler brasileiro, Celso Amorim, de quem se esperava mais racionalidade, saiu em defesa da proposta chavista. Disse que o Mercosul não pode limitar-se a ser um bloco comercial; tem de evoluir para um organismo geopolítico.
Em princípio, nada de especialmente errado em dar uma dimensão estratégica a um bloco econômico, principalmente quando se leva em conta que o processo de integração só se completa com a convergência política, que é para onde se encaminha, por exemplo, a União Européia. O problema está em relegar ao descaso o assentamento dos alicerces que são obrigatoriamente econômicos e comerciais.
Enquanto isso, o presidente Lula parece não mais fazer questão da solidez técnica. Foi ele quem puxou a Venezuela para dentro do bloco sem exigir que estivesse preparada para isso. Para que pudessem ser aceitos na união monetária, a União Européia exigiu que cada um dos seus membros cumprisse três metas básicas: déficit público inferior a 3% do PIB, inflação abaixo dos 3% ao ano e dívida pública não superior a 60% do PIB. Mas a Venezuela foi prontamente admitida e dado a ela prazo de quatro anos para que adequasse sua estrutura tarifária à Tarifa Externa Comum (TEC) do bloco.
Agora, é o presidente Lula que, em nome de uma duvidosa generosidade para com os mais fracos, pretendeu entregar carteirinha de sócio à Bolívia sem pedir nada em troca. A idéia é admitir o país sem ele ter de aderir à TEC e sem abandonar a Comunidade Andina, que tem compromissos incompatíveis para um membro do Mercosul, amarrado que está a uma política comercial unificada. É como instalar churrasqueira e churrasqueiro na sede de um clube vegetariano.
Foi também Lula que tentou abrir novas perfurações nas regras do Mercosul ao pretender que Uruguai e Paraguai gozassem de tratamento aduaneiro preferencial, de maneira que pudessem importar de terceiros e reexportar a mercadoria sem impostos para os demais sócios.
Paradoxalmente, o gesto de sensatez veio da Argentina, liderada pelo populista Néstor Kirchner. Foi a chancelaria argentina que interveio a tempo e empurrou essas propostas do presidente Lula, que desmoralizariam de uma vez o Mercosul, para serem examinadas em comissões de trabalho, onde podem definhar.
Até agora, o Mercosul foi apenas um bloco comercial desarticulado. Esta reunião de cúpula mostrou que hoje não passa de um projeto sem rumo.