Entrevista:O Estado inteligente

sábado, janeiro 07, 2006

VEJA A situação se complica sem Sharon

Ruim com ele, pior sem Sharon

Grave derrame cerebral tira de cena
o falcão israelense que resolveu ser
estadista. A situação no Oriente Médio
fica mais instável ainda


Vilma Gryzinski


Rina Castelnuovo/The New York Times


Aplicar a força com violência máxima, exercer o poder de forma avassaladora, manter o inimigo sob assédio inclemente, manipular os aliados mais além do que a prudência recomenda, ignorar desafiadoramente os amigos. Na política e na guerra, essas foram as máximas de Ariel Sharon. Agonizante depois de um derrame devastador sofrido na quarta-feira, o primeiro-ministro de Israel deixou o cenário político com o mesmo estrépito com que viveu a maior parte de seus 77 anos. Nem a proximidade da morte nem a muito humana tendência a relevar os defeitos e exaltar as qualidades dos que obedecem a seu chamado atenuaram o fato de que, fora de Israel e de seus filhos, era praticamente impossível encontrar quem tivesse palavras genuinamente amáveis sobre ele. Se a história tivesse seguido outros rumos, Sharon poderia acabar diante de um tribunal internacional por crimes de guerra. Por trás da figura rubicunda, tinha um temperamento irascível, um sorriso acre e nem o mais remoto traço de simpatia por vítimas inocentes dos muitos conflitos de que participou que não pertencessem a sua própria tribo. Sua estatura política, no entanto, adquiriu dimensões colossais. Para atingi-las, o mais brutal representante das várias gerações de soldados-estadistas que vicejaram no seio da pátria judaica teve de fazer uma coisa de que ninguém jamais o julgou capaz: mudar de idéia.

Numa arrepiante sucessão de reviravoltas ocorridas ao longo do último ano e meio, Ariel Sharon chacoalhou o mundo tal como aliados e inimigos conheciam quando aceitou o princípio de trocar terra por um acordo com os palestinos e desalojou na marra os assentamentos judaicos em Gaza dos quais havia sido o maior paladino. Aproximando-se, espantosamente, do centro – em termos do espectro político israelense –, saiu do mais tradicional partido de direita, o Likud, para fundar o Kadima. Com popularidade batendo em 60%, deveria ser reeleito em março próximo. Estaria assim legitimado para aplicar sua própria solução ao conflito com os palestinos: devolver uma parte e anexar outra da Cisjordânia, reiterar a encampação eterna e inalienável de Jerusalém ao Estado judeu, dar as fronteiras de Israel por redesenhadas e mandar os palestinos se virar para criar nos territórios restantes seu próprio país independente. Seria uma solução terrivelmente amarga, se não inaceitável para a maioria dos palestinos. Mas o fato é que, sem o plano Sharon, não existe nenhuma alternativa. Sob o impacto de sua doença, as primeiras pesquisas de opinião indicavam uma vitória do Kadima, mas todo mundo sabe o que pode acontecer: o agravamento do estado de anarquia que já vigora na região da Autoridade Palestina, uma grande manifestação de força dos fundamentalistas do Hamas nas eleições locais e um punhado de atentados suicidas. Estaria assim aberto o caminho para que o Likud, sob a liderança de Benjamin Netaniahu – beneficiado primeiro pela bala assassina que derrubou Yitzhak Rabin em 1995 e agora pelas artérias entupidas de Sharon –, retomasse o poder e a política de não negociar nada nem devolver território algum.


Oded Balilty/AP
Kevin Frayer/AP
FOI SHARON QUEM FEZ
Retratos de dois legados controvertidos: retirada, na marra, de colonos da Faixa de Gaza, território palestino que Sharon desocupou unilateralmente, e o muro, odiado pelos palestinos por impor uma fronteira arbitrária, mas que ajudou a diminuir a violência em Israel

Tal como Rabin, outro general que virou político, Sharon aceitou a idéia de desistir da ocupação dos territórios palestinos não por senso de justiça, espírito de solidariedade ou compaixão em face do sofrimento alheio. Muito menos por fraqueza ante as pressões internacionais em favor de uma solução para um problema que atormenta o mundo há mais de meio século. O único fator que contou foi chegar à conclusão de que não convinha aos interesses de Israel manter sob controle direto uma grande população palestina, em permanente expansão, consumindo energia e recursos militares. Era mais negócio dar-lhes o estado próprio e blindar as próprias fronteiras, num acordo cujos termos seriam todos ditados por ele – mantendo-os, claro, a literalmente alguns minutos do alcance da máquina militar israelense, em caso de represálias por mau comportamento. As condições externas também favoreciam o pacote, considerando-se que George W. Bush é o presidente americano mais suscetível às pressões israelenses em toda a história e provavelmente aceitaria transgressões ao plano de paz da comunidade internacional para a região.

Para entender Sharon, ajuda relembrar o fator formador da psique de todo israelense, em especial dos que ocupam posições de liderança: a defesa dos interesses de Israel nos termos mais extremos possíveis está infinitamente acima de qualquer outra consideração. Em países "normais", as pessoas entram para a vida pública – desconsiderando-se as motivações pessoais – por amor à pátria, identidade com um projeto político, desejo de melhorar a vida de seus concidadãos ou qualquer outra variação desses impulsos. Em Israel, tudo isso é obscurecido pelo sentimento de que a existência nacional, do país e do povo judeu, está permanentemente ameaçada e é preciso protegê-la a todo custo. Quatro mil anos de história tempestuosa, culminando, em pleno século XX, com a hedionda abominação produzida pelo genocídio nazista, explicam essa obsessão, que gera tanto um incomparável comprometimento com os interesses nacionais quanto, eventualmente, graves deformações morais na hora de escolher as formas de defendê-los. Sharon foi um produto extraordinário dessas duas confluências.


The New York Times
OPRESSÃO E TERROR
Uma terra, dois povos, dois dramas: palestinos passam pela humilhação da revista em posto de controle israelense, medida para evitar o flagelo dos atentados suicidas como este, numa feira de Hadera, em outubro, com cinco mortos e 28 feridos
George Ginsberg/AFP

"Se tem uma coisa realmente importante para mim é o que vai acontecer com os judeus, seja daqui a trinta, 300 ou 3.000 anos. Penso nisso o tempo todo", disse certa vez o homem que, aos 14 anos, quando ainda se chamava Ariel Scheinermann, entrou para a luta clandestina pela instauração do Estado de Israel. Filho de judeus russos, havia nascido, em 1928, numa comuna rural do tipo criado pelas primeiras levas de sionistas onde a comida era tão escassa que, dizem, se desenvolveu aí o apetite primal que o transformou em glutão incorrigível. Na véspera do primeiro derrame cerebral que sofreu, em 18 de dezembro passado, teve um almoço com parentes e amigos no qual ingeriu o seguinte cardápio: kebab (o típico espetinho árabe), hambúrguer, bife, costeleta de cordeiro, salada e dois tipos de sobremesa.

Ferido no abdômen durante uma batalha da Guerra da Independência, em 1948, foi abandonado pelos companheiros. Nasceu aí a convicção, compartilhada com o resto das futuras forças armadas israelenses, de que nenhum soldado judeu jamais seria deixado para trás no campo de batalha. E a desconfiança eterna em relação a tudo e a todos, incluindo seus superiores – no que era plenamente retribuído. "Sharon é capaz de mandar os tanques cercar meu gabinete caso eu faça alguma coisa que o contrarie", reclamou, em tom apenas meio jocoso, o então primeiro-ministro Menachem Begin, quando cogitava, em 1981, se devia nomeá-lo ministro da Defesa.

Nomeado, ele não mandou os tanques para o gabinete, mas para Beirute. A invasão do Líbano, em 1981, começou com a ocupação do sul do país em nome da segurança – naquela época, os palestinos de Yasser Arafat e outros grupos operavam livremente no país – e terminou com uma guerra total à OLP, envolvendo inúmeras outras facções armadas num emaranhado infernal de violência e alianças espúrias. Na época, uma das facções cristãs mais importantes do Líbano, a Falange, era aliada dos israelenses. Enlouquecidos de fúria pelo atentado que havia matado seu chefe e presidente eleito do país, Bashir Gemayel, os falangistas invadiram os campos de refugiados palestinos chamados Sabra e Chatila, situados numa região de Beirute controlada pelas tropas israelenses. Durante 36 horas, dizimaram com crueldade inominável cerca de 800 pessoas, na grande maioria mulheres, crianças e velhos – os homens em idade de combate estavam na luta. A responsabilidade pelo massacre explodiu, como era devido, no colo de Sharon. Houve enorme reação internacional e, em Israel, uma parte da opinião pública, horrorizada, mobilizou-se em manifestações de protesto. Uma comissão de inquérito indicada pela Suprema Corte considerou-o "responsável indireto" pelo massacre, Sharon foi demitido e caiu no ostracismo.

Jamais manifestou o menor sinal de arrependimento ou contrição. Ao contrário, lutou furiosamente num processo por calúnia movido, em Israel e nos Estados Unidos, contra a revista Time, por uma reportagem que dizia que havia combinado com a família de Bashir Gemayel a vingança contra palestinos por seu assassinato (embora o teor tenha sido considerado difamatório, ele não ganhou da Justiça americana os 50 milhões de dólares que pediu de indenização; em Israel, houve um acordo pelo qual a revista pagou os custos advocatícios). A seu lado, em todos os momentos, a mulher, Lily, o amor de sua vida. Como na carreira política, a vida privada de Sharon foi cheia de reviravoltas e dramas. Sua primeira mulher, a imigrante romena Margalit, morreu num acidente de carro em 1962. Um ano depois, ele casou-se com a irmã dela, Lily. Juntos criaram o filho mais velho dele (e sobrinho dela), Gur, e os dois meninos que tiveram, Omri e Gilat. Moravam na Fazenda do Plátano, o refúgio que Sharon construiu no Deserto de Neguev, onde fazia jus ao apelido carinhoso de Arik e mostrava a face mais humana, de amor à terra, à família e aos animais. Em 1967, numa tragédia rara em Israel, apesar da imensa quantidade de armas de guerra distribuídas entre a população, Gur foi morto por um disparo acidental quando brincava com amiguinhos com os fuzis da família. Sharon só conseguiu falar sobre a tragédia muitos anos depois, quando a própria Lily lutava contra o câncer de pulmão que a matou, em março de 2000.

Durante semanas a fio, Sharon visitou, todos os dias, o túmulo da mulher – e seguindo depois para a campanha que o levaria à chefia de governo. Foi na mesma época, antes mesmo da eleição, que fez mais uma provocação acintosa aos inimigos palestinos ao visitar, cercado de guarda-costas, a Esplanada das Mesquitas, no centro da parte histórica de Jerusalém, onde dois magníficos templos muçulmanos funcionam como espaço de oração e resistência. O novo ciclo de violência desencadeado a partir daí foi o pior das últimas décadas de conflito. Terroristas palestinos lançaram-se furiosamente na chamada Intifada 2, com atentados sucessivos; Israel retaliou com a reocupação de áreas palestinas, assassinatos de chefes dos grupos radicais, bombardeios de regiões onde operavam com a inevitável conseqüência de vítimas civis, a construção do imenso muro ao longo de uma fronteira que engloba territórios que teoricamente deveriam ser devolvidos e, por fim, o confinamento de Yasser Arafat num prédio semidestruído e isolado de Ramallah, de onde só saiu para morrer num hospital francês. Durante todo esse período, Sharon foi um dos principais beneficiários do 11 de Setembro e de seus desdobramentos. Depois de um estranhamento inicial com Bush (pelo qual, num ato raro e pragmático, pediu desculpas), ele desenvolveu praticamente uma relação ideal. O governo americano endossou a política de intransigência total e o isolamento de Arafat e ainda varreu do mapa, sem que Israel precisasse verter uma única bomba – ou gota de sangue –, um dos maiores inimigos do Estado judeu, Saddam Hussein, o único dirigente árabe a bombardear cidades israelenses desde a guerra da independência, embora com notável ineficácia, durante o primeiro conflito com os Estados Unidos, em 1991.

Com a retaguarda assim protegida, a morte de Arafat, a violência controlada pelo duplo efeito do muro e da trégua ainda em vigor com as autoridades palestinas, Sharon decidiu-se pela desocupação unilateral da Faixa de Gaza, uma região esquálida e conturbada onde 9.000 judeus viviam em assentamentos ultramilitarizados, em meio a 1,3 milhão de palestinos. "Foi movido por um raciocínio pragmático: essa era a vontade de grande parte da população israelense e da comunidade internacional", disse a VEJA o analista palestino Shukry Abed, do Middle East Institute, em Washington. Apesar das vantagens evidentes, precisou de seus maiores trunfos – vontade e mão-de-ferro – para dobrar a ira dos colonos, justificada visto que haviam se instalado lá incentivados e subsidiados por sucessivos governos. Incorreu também na maldição dos religiosos para os quais Gaza faz parte do contrato imobiliário irrenunciável confiado pelo próprio Jeová ao povo de Israel. A retirada de Gaza também rachou o Likud, levando-o à ruptura e à formação do novo partido. "Nos últimos dois anos, Sharon agiu como estadista, coisa que não havia feito ao longo de toda a sua carreira", afirmou o filósofo e cientista político israelense Yaron Ezrahi.

Sharon e seu projeto somem do mapa da região onde se misturam Deus, petróleo, ódios tribais e interesses do planeta inteiro num momento de grandes incógnitas. A Palestina está convulsionada; o regime sírio, acuado por suas próprias torpezas, sofre do pior dos males nessa parte do mundo – a fraqueza –; o Iraque ocupado sangra sob a incontrolável violência dos fundamentalistas à la Al Qaeda; o Irã assume cada vez mais que pretende mesmo fazer a bomba nuclear, possibilidade que se levada adiante inexoravelmente conduzirá a um ataque de Israel. Os vizinhos todos se apavoram diante da possibilidade de um eixo xiita Irã-Iraque. A grande recompensa prometida por Bush aos países muçulmanos aliados em troca da invasão do Iraque – a criação de um Estado palestino – fica mais complicada ainda do que já era. Fora de Israel, ninguém chora por Sharon, mas se reconhece a crua realidade: ruim com ele, pior ainda sem. A maior homenagem que recebeu talvez tenha sido do jornal jordaniano que escreveu em editorial: "Somos forçados a admitir que Ariel Sharon dedicou toda sua vida em favor de seu povo. Se fosse um líder árabe e tivesse feito a mesma coisa que fez em Israel, teria sido um ídolo das massas, do Atlântico até o Golfo".

Com reportagem de Diogo Schelp e Ruth Costas

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