Entrevista:O Estado inteligente

domingo, janeiro 08, 2006

Quem tem medo de Serra? Ou Lula, a Gilda dos mercados

PRIMEIRA LEITURA
Por Reinaldo Azevedo

Dia desses, um interlocutor me surpreendeu com uma afirmação categórica, surgida lá das certezas mais íntimas: "Serra é perigoso porque é contra o sistema de metas de inflação". Contraditei, lembrando que jamais tinha lido qualquer coisa a respeito. Ainda tentei ponderar que se pode, e não estou dizendo que seja necessariamente o caso do tucano, ser favorável ao sistema, mas, eventualmente, crítico de sua aplicação e do número perseguido. Parece-me que o bom usuário do regime de metas de inflação buscaria um número que fosse econômica, política e socialmente factível, relevando, inclusive, desculpem-me este traço de atraso lamentável, as necessidades de crescimento da economia. Sei que até Alan Greenspan pensa dessa forma atrasada. Busco o exemplo do presidente do Fed porque pretendo ser um passadista algo influente. Ele não me parece um homem avesso à economia de mercado, entendem?

O meu conviva, uma dessas pessoas que dizemos "de mercado", não quis saber e tampouco confiou em mim: Serra seria contra o tal caminho e, se for eleito presidente, pode tentar inviabilizá-lo. Eu quis saber o que o tucano deveria fazer para acabar com aquela sua impressão: segundo ele, deixar claro, desde já, seu compromisso com o tal sistema.

Indaguei o que mais, segundo o meu companheiro de prosa, Serra deveria esclarecer para se tornar, então, um candidato com "menos risco" para os mercados. E ele foi me falando tudo, com o desassombro dos bons camaradas. Deveria vir a público para deixar claro que não pensa em nenhuma forma de interferência no câmbio, já que ele é flutuante, como nas boas economias do mundo. Ponderei que, "nas boas economias do mundo" — e os países asiáticos, além dos emergentes, estão aí para prová-lo —, há uma brutal interferência oficial na política cambial. E, nesse momento, percebi, que o exemplo "que vem de fora" é só um mito, quase um fetiche.

"Ah, mas nós não somos um país asiático." Disso sei bem: informa-me a geografia. Eu só estava tentando descaracterizar uma afirmação genérica que é falsa. "Ademais — ponderei —, o BC brasileiro interferiu, e muito, no câmbio nos últimos tempos. Se não conseguiu chegar aonde queria, impediu que o real se valorizasse ainda mais." Em suma, o Brasil é um país que vive atuando no mercado cambial. O diabo é que o faz quando já não adianta mais. Então, vejam só, não se tratava de um temor com base em qualquer risco objetivo. É só uma marcação dos mercados homem a homem. Para quê? Chegaremos lá.

A conversa ia bem. O que mais Serra deveria fazer para se mostrar "de confiança". Ah, se ele anunciasse um BC independente, tudo seria diferente. "Independente" de quem?, eu quis saber. A resposta veio como uma lâmina: dos políticos. Entendi. Até havia quatro ou cinco meses, alguns iluminados diziam que o país cresceria 5% em 2005. Deve ficar em menos da metade, o que é humilhante em face do que acontece no mundo. E, claro, dois preços fundamentais como câmbio e juros deveriam ser decididos longe desse "nojo" que é a política! Ainda que os desdentados decidissem invadir o Palácio de Inverno e empalar o governante de turno, os bravos rapazes do BC estariam protegidos numa fortaleza legal. E pensar que foi Lula quem tornou esses demofóbicos tão ousados, não é mesmo?

A conversa estava ficando cada vez melhor. Meu interlocutor também achava que Serra poderia dissipar algumas nuvens de desconfiança se deixasse claro que jamais pensaria em qualquer coisa como política industrial ou que nome possa ter uma intervenção do governo numa política para organizar o crescimento. "Até os EUA fazem isso", lembrei. Mas nós não podemos. Os moços dos mercados ficam nervosos. Por isso, entendi, eles têm um certo temor de Serra, pouco importando que o país cresça menos do que o mundo há um quarto de século. Antes, éramos Belíndia. Não nos sobraram nem Bélgica nem Índia.

Chegando em casa, decidi fazer uma pesquisa. E fui ler os prognósticos dos bravos rapazes cuja inteligência obedece à, se me permitem, metafísica da PUC do Rio, hoje uma verdadeira escola de pensadores econômicos, o que não deixa de ser uma virtude. Mesmo que seja aquele pensamento. Li as graves advertências que faziam às vésperas da desvalorização do real, no começo do segundo mandato de FHC. Era inevitável, eles diziam: a inflação iria explodir. Estavam certos sobre isso como o crente convicto em uma religião qualquer. E, no entanto, operou-se o que poderia ser um milagre (a inflação não se mexeu), não fosse o fato de que não havia renda para pressionar a demanda.

É admirável, vá lá, que todos continuem fidelíssimos a seu credo, que lhes rende, de resto, influência e, não custa lembrar, uma vida bastante confortável. Muitos deles inventaram a sua própria maneira de viver Gramsci: "pessimistas no diagnóstico", sempre recomendaram que não se mexesse em nada; "otimistas na ação", tornaram-se todos ótimos banqueiros (ou seus subordinados de luxo).

Entendi o que o meu interlocutor queria. A conversa de "metas de inflação" era, e nem ele sabia, mero diversionismo. O que realmente o deixaria feliz seria uma Carta ao Povo Brasileiro, desta feita assinada por Serra, garantindo que nada vai mudar; que o Brasil está tão maduro institucionalmente, que um governo pode ser substituído sem que a gente nem mesmo note. Não faço juízo de valor nem entro no mérito, apenas lembrarei um caso que põe em debate a democracia e a estabilidade das regras: vejam o que George W. Bush fez dos números que herdou de Bill Clinton. Os superávits gêmeos viraram déficits gêmeos.

Ora, é óbvio que Bush traiu um compromisso de campanha. Se tivesse assinado uma "Carta ao Povo Americano", as contas dos EUA poderiam até estar em melhor estado, mas sua democracia é que teria ido para o brejo. Quando o PT assinou aquele documento, expondo-se ao servilismo para ganhar as eleições (afinal, seus sequazes já tinham feito e vinham fazendo coisa bem pior), acenaram com a irrelevância da política, que passaria a ser, então, apenas o locus das trapaças, das vigarices, das manhas, das artimanhas, das bravatas. O valerioduto se encarregaria da canalha. O Brasil que interessa, o dos negócios entre o Estado e o seleto grupo de privados que conta, este ganhava uma blindagem contra qualquer interferência da política.

Esse papo, pois, de que Serra é contra o regime de metas é mero pretexto para tentar arrancar dele, precocemente, um "fica tudo como está". E a mesma, se me permitem, malandragem tenta envolver o governador Geraldo Alckmin, a quem se atribuiriam, então, essas virtudes "continuístas". São distorções (acho eu) opostas, porém combinadas.

O debate está no começo. Está nas páginas da edição de janeiro de Primeira Leitura. Ali se fala de caminhos, de alternativas, sem dar receita, é claro, já que receita não há. O que me parece insuportável é que pessoas que já erraram feio antes, de forma monumental, procurem justificar o desempenho medíocre da economia brasileira segundo o que seria o rigor acadêmico, fingindo-se de ortodoxos. Uma economia entupida de dólares, com superávit primário gigantesco, mas de má qualidade, paga os juros reais mais altos do mundo sob o pretexto de conter a inflação, mas estimula um programa de crédito que se volta para o consumo: a inflação não vai embora de vez, mas o crescimento desaba. Isso é ortodoxia?  Isso, sim, é que é heterodoxia; isso, sim, é que é exotismo.

No fim das contas, o que surge como óbvio é que aqueles que fingem temer Serra têm mesmo um candidato não do coração, mas do bolso: Lula. Ele é a Gilda dos mercados. Esqueçam, rapazes: para certos negócios, jamais haverá um presidente como ele. Seja Serra, Alckmin, Garotinho ou o Cacareco. Como intuem que um segundo mandato do Apedeuta traria na rabeira uma grave crise, estão tentando alguma alternativa. Querem um novo Bel'Antonio, só que menos trapalhão. Se, na poesia, a vida é sonho, na política, a vida é lobby.

Ok, estão jogando o seu jogo. O que não quer dizer que devam contar com a nossa ajuda.

[ reinaldo@primeiraleitura.com.br]
Publicado em 8 de dezembro de 2006.

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