FOLHA
A conhecida frase de Marx nas primeiras linhas de "O 18 Brumário de Luís Bonaparte" fez fortuna e atravessou décadas e séculos: "Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha, e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado".
Alguns sustentam o papel decisivo do passado em nossos destinos; outros apagam sua presença em nome da vontade política
Embora o peso atribuído na frase ao determinismo seja maior do que o campo de possibilidades das ações humanas, ela sintetiza um dilema crucial, com incidência nas opções do presente. Mesmo assim, pela via do senso comum, da retórica ou do pendor por estabelecer leis da história, há quem, na prática, negue a dialética do texto. Curiosamente, dessa perspectiva se deduzem conclusões conservadoras ou salvacionistas.
Tomando o caso brasileiro, de um lado, explícita ou implicitamente, alguns sustentam o papel decisivo desempenhado pelo passado em nossos destinos, anulando as possibilidades do presente; outros tendem a apagar a presença do passado, em nome da famigerada "vontade política".
A primeira versão é marca registrada do conservadorismo cético, que muitas vezes corresponde à sustentação ideológica de interesses enraizados. Um bom exemplo é o da atitude fatalista diante da corrupção a que se refere o historiador José Murilo de Carvalho, no artigo "Sobre pizzas e panetones" ("O Estado de S. Paulo", 1/1/05). Essa atitude, diz ele, consiste em naturalizar a corrupção, que seria tão brasileira quanto o feijão com arroz, quase genética, um atributo da raça. Não haveria, pois, muito a fazer nesse campo, a não ser dar de ombros ou engrossar as fileiras da corrupção.
A segunda versão se vincula à crença no papel decisivo desempenhado por um líder salvador, ou ao "complexo de Pedro Álvares Cabral", que emana hoje das mentes palacianas. Em poucas palavras, tudo estaria por ser feito, mas tudo está ao alcance de nosso guia e de seus coadjuvantes.
Se admitirmos a disjuntiva contida na frase de Marx, surge dela uma questão central. Qual o papel que devemos atribuir aos "grilhões do passado"? Qual, por sua vez, o espaço ocupado pelas decisões do presente?
Não há fórmula matemática para responder a essas perguntas. Existem linhas de pensamento que enfatizam o peso estrutural negativo do passado -como é o caso de Raymundo Faoro- e outras que vão em sentido contrário, a exemplo de Bolívar Lamounier.
Em seu livro "Da Independência a Lula: Dois Séculos de Política Brasileira", Lamounier não só relativiza os constrangimentos do passado na construção das instituições políticas e da cidadania como também encara o passado sob uma ótica menos pessimista . A certa altura, ele se pergunta: "Como acreditar que a democracia pudesse ter chances razoáveis em um país moldado, no campo econômico, pela exploração colonial, monocultora e escravista e, no aspecto político e administrativo, pelo absolutismo e pelo patrimonialismo do Estado português?".
A resposta, muito sucintamente, vai no sentido de que o patrimonialismo centralizador não teve a força pretendida por muitos autores, resultando numa combinação de patrimonialismo fraco e de poder privado. Se as condições brasileiras não favoreceram, por essas e outras razões, a emergência da democracia, permitiram, porém, diz Lamounier, a construção de um sistema representativo desde a Independência.
Penso que, nesse plano, o autor tem razão. Se as instituições políticas e a representação foram limitadas por exclusões legais, pela negação da humanidade dos escravos, pela fraude, pela subserviência ante os poderosos em certas regiões do país, elas não representaram um simples "verniz", simulacro de liberalismo, como tantos insistem em afirmar. Aí está o exemplo de um processo que desembocou positivamente numa democracia de massas, com muitas imperfeições, por certo, mas passível de ser reformada, desde que, aí sim, as elites políticas tenham disposição para tanto.
Levar em conta o processo histórico nos permite descartar a contínua "invenção da roda" e dimensionar tanto o que se construiu quanto os entraves legados pelo passado. E nos permite considerar também as limitações do presente, advindas, para o bem ou para o mal, principalmente, de um mundo estreitamente relacionado.
As limitações do passado e do presente não são barreira intransponível desde que saibamos buscar transformações ao mesmo tempo ousadas e graduais. Há um razoável consenso em torno dos objetivos dessas transformações: reduzir a desigualdade social, ou pelo menos a pobreza, expandir a educação e melhorar sua qualidade, controlar a violência, aperfeiçoar as instituições, diminuir o nepotismo e a corrupção na simbiose da vida pública e dos negócios privados.
Apesar do consenso nos enunciados, nem por isso o caminho a ser trilhado é fácil, constituindo tarefa de várias gerações. Se governos e setores organizados da sociedade conseguirem percorrê-lo, com rumos programáticos transparentes, com seriedade e continuidade, estaremos progredindo verdadeiramente e estaremos melhor preparados para enfrentar as vicissitudes da vida social, que sempre existirão.
Entrevista:O Estado inteligente
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