Vê melhor, quem vê de longe, às vezes. Ler as notícias do Brasil, sem a pressa de ter que fazer colunas e comentários diários, confirmou-me uma sensação de que as autoridades estão brincando com o cidadão e pondo em risco a democracia. Não há fé democrática que resista, a longo prazo, à rotina de absurdos e achincalhes a que estamos submetidos. Eles vêm de todos os lados: são um ataque múltiplo e incessante.
Depois do mais vergonhoso ano político da nossa história recente, quando flagrantes de desfaçatez dos deputados deixaram o país atônito, o que se poderia esperar era uma atitude exemplar dos políticos, jamais o que se viu: deputados do mensalão e do cuecão sendo absolvidos, deputados e senadores ganhando a mais para gazetear.
O recesso em si é extravagante. Três meses por ano é um tempo exagerado de folga, mesmo ponderando a natureza do trabalho do político. Receber a mais no recesso é outro absurdo. Receber e não trabalhar é desrespeito. Além dos gazeteiros, devem uma explicação ao país os presidentes da Câmara e do Senado. Não basta o presidente da Câmara dos Deputados, Aldo Rebelo, posar diariamente de atração turística num Congresso deserto. Ele e o presidente do Senado precisam explicar por que decidiram convocar o Congresso para um período em que se sabia que não haveria a mais mínima presença, entre o fim de dezembro e o começo de janeiro.
Os políticos brasileiros se comportam como se fossem prisioneiros de uma compulsão que os obriga a errar reiteradamente. Só isso explica a absolvição de mensaleiros, os arranjos feitos agora para poupar alguns, a proposta de aumentar o número de deputados e até este — seria cômico se não fosse sério — golpe da doação do dinheiro extra recebido.
A Operação Tapa-Buraco não é apenas absurda, é inexplicável. No ano passado, a Secretaria do Tesouro Nacional garantiu que foram liberados para investimentos no Ministério dos Transportes R$ 7 bilhões. Isso é mais do que se investiu nos anos recentes. Muito mais. Mesmo assim, 2005 terminou com essa espalhafatosa operação de emergência, como se o governo não tivesse tido três anos para ver que as estradas estavam esburacadas, como se não houvesse muito dinheiro em caixa no ministério para traçar um plano com antecedência. Emergência ocorre em início de governo ou no meio de uma tragédia inesperada. Nesses casos, podem ser suspensos os procedimentos normais em obras públicas. Mas, no fim do terceiro ano de governo e num ano em que R$ 7 bilhões foram liberados para o Ministério dos Transportes — incluindo nesse valor o R$ 1,8 bilhão enviado para os estados — não há razão para se fazer um operação tão tosca que merece o nome de Operação Tapa-Buracos. Outros governos erraram nos transportes, mas o governo Lula já teve tempo e dinheiro demais para evitar essas obras inúteis e apressadinhas de começo de ano eleitoral.
Na Justiça também se brinca com o cidadão. As ambições políticas do ministro Nelson Jobim são um atentado à independência dos poderes. Se ele fica lá com olho na política, que capacidade terá de se manter neutro nas questões que afetem seus interesses? O erro começa em se permitir que juízes sejam cidadãos mais iguais que os outros e possam ter outro prazo para filiação, mais dilatado. A partidarização do Supremo com que o presidente Lula anda flertando é de um perigo extremo. Os gastos excessivos da Justiça, um despropósito. Em fevereiro, será inaugurado um prédio de luxo acintoso, como sede do Tribunal Superior do Trabalho, que custou R$ 202 milhões, em que cada um dos 27 ministros terá um gabinete de 240 metros quadrados. Mais uma das extravagâncias.
O Estado brasileiro custa caro demais ao cidadão, que não agüenta mais pagar impostos e conviver com a ineficiência de todos os serviços pelos quais paga. E os órgãos, repartições e autarquias têm uma inesgotável capacidade de criar despesas, principalmente as que se eternizam. O TCU, por exemplo, aprovou a incorporação de uma gratificação aos salários dos servidores federais que exerceram cargos de confiança entre 1998 e 2001; com isso, são mais R$ 2 bilhões só em pagamentos de retroativos. O benefício já foi pago aos servidores do STJ e da Procuradoria Geral da República, mas os ministros do TCU decidiram que todo mundo pode entrar no trem da alegria e, quando tomaram essa decisão, foram efusivamente aplaudidos pelos sindicalistas presentes na última sessão do ano passado do Tribunal de Contas. A gratificação atende pelo nome de "os quintos". O nome, ao menos, é apropriado.
Os absurdos poderiam ter sido só esses, mas foram mais: no Rio, estado e prefeitura brigam para saber quem deve tirar as gigogas que empesteiam as praias, rios e lagos, revelando a poluição descontrolada das águas do balneário; o MEC decide distribuir bolsas de estudo a alunos pobres em escolas reprovadas por sua própria avaliação; o Exército usa índios (e índias) em seus treinamentos e deixa o país atônito. Com uma lista tão grande de dissabores, o cidadão brasileiro poderia, ao menos, ter sido dispensado de ouvir declarações impensadas do presidente. Mas ele foi incansável. Disse uma atrás de outra.
As autoridades brasileiras, de todos os poderes e todas as instâncias, deveriam refletir mais detidamente sobre o acúmulo de grosserias a que os brasileiros estão submetidos e se perguntar: até quando o país agüenta?