O GLOBO
O falecido ex-presidente Tancredo Neves gostava de repetir um ditado mineiro que diz que "a esperteza, quando muita, cresce e engole o dono". É o que estamos vendo nos últimos tempos na política brasileira, um desfilar de falsos espertos, que acham que ficarão impunes mesmo cometendo os descalabros que estão sendo denunciados a cada dia.
Na primeira etapa das CPIs, nos defrontamos com desculpas esfarrapadas a respeito dos saques na boca do caixa, em dinheiro vivo. Ninguém sabia de nada, ninguém vira nada.
O ex-presidente da Câmara João Paulo Cunha chegou ao cúmulo de dizer que sua mulher havia ido ao Banco Rural para pagar a mensalidade da TV a cabo. A secretária dele, Silvana Paes Japiassu, também foi à agência duas vezes – em abril de 2004. João Paulo Cunha, indignado em seu depoimento à CPI dos Correios, disse que não seria burro de mandar a própria mulher receber tal tipo de dinheiro.
Josias Gomes da Silva, do PT da Bahia, o único deputado que esteve pessoalmente duas vezes na agência, em setembro de 2003, tentou ser criativo na esperteza: disse que fôra lá para fazer pesquisa sobre os juros cobrados pelos bancos. Já o deputado Paulo Rocha, líder do PT no Pará, disse que sua secretária havia estado no prédio do banco, mas não no guichê. Fôra a uma clínica neurológica. Acabou renunciando para não ser cassado, mas continua atuando dentro da Câmara, inclusive definindo verbas no Orçamento da União.
Mais adiante, pressionados pelos fatos incontestáveis, todos admitiram que receberam dinheiro através do valerioduto, autorizados pelo tesoureiro do PT, o famigerado Delúbio Soares. Era a segunda etapa da "esperteza", justificar o dinheiro ilegal como sendo caixa 2 de campanha eleitoral, desculpa elaborada pelo lobista Marcos Valério e por Delúbio, avalizada pelo próprio presidente Lula em uma hoje famosa entrevista que concedeu em Paris. A mesma desculpa usada pelo ex-presidente Fernando Collor para justificar o dinheiro ilegal que irrigava suas contas: a expressão "sobras de campanha" ficou tão famosa na época quanto "dinheiro não contabilizado", cunhada por Delúbio Soares.
Hoje, estamos às voltas com mais espertezas dos que estão na fila da degola. O deputado Pedro Corrêa, capa preta do PP envolvido até o pescoço na distribuição de dinheiro do valerioduto, conseguiu dar vários passos atrás na temida fila com um golpe burocrático na Comissão de Ética da Câmara. Uma testemunha de defesa pediu para adiar o depoimento por questões de saúde, e o processo de Corrêa deixou de ser o primeiro da fila. O desprotegido deputado Wanderval Santos, do PL, será o primeiro nome a ir ao plenário da Câmara depois da absolvição do deputado Romeu Queiroz, do PTB mineiro. É o escalado para levar "um tiro na testa", no peculiar linguajar com que na Câmara está se definindo a situação, diante da revolta que a absolvição de Queiroz provocou na opinião pública.
O presidente do Conselho de Ética, deputado Ricardo Izar, é exemplo típico do político que acha que pode enganar o eleitorado simplesmente "no gogó". Insistiu para que houvesse a convocação extraordinária, para que os processos de cassação não fossem paralisados, e no mesmo dia deu férias a seus membros. De volta aos trabalhos, disse que se o deputado Pedro Corrêa tivesse usado de subterfúgios para evitar ser o primeiro da lista do plenário, ele daria um jeito de recolocar o processo dele em primeiro lugar. Não fez nada. O próprio Izar disse que ninguém esperava uma reação tão negativa da opinião pública diante da absolvição de Romeu Queiroz, o que mostra que ele e todos os outros que se surpreenderam na Câmara vivem em uma realidade paralela à da maioria do povo brasileiro. E que seus conceitos de ética não combinam com os dessa maioria.
Por isso, muitos deles anunciaram que fariam doações com o pagamento da convocação extraordinária, e simplesmente não doaram nada. Ou doarão depois de denunciados. É mais um degrau na escalada de "espertezas" com que nossos parlamentares brindam a chegada do ano eleitoral, onde serão submetidos ao crivo do eleitorado. Pela desfaçatez com que agem, não temem o veredicto das urnas. Pois deveriam. Segundo o Diap (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar), um dos mais respeitados termômetros da atuação dos parlamentares, o índice de renovação nas próximas eleições será superior à média dos quatro últimos pleitos, que foi da ordem de 50%: em 1990, foi de 62%; em 1994, de 54%; em 1998, de 43%; e em 2002, de 46%.
Já o Laboratório de Estudos Experimentais do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro), num amplo levantamento que abrange as eleições desde 1945 até a de 2002, mostra que historicamente o índice de renovação bruta da Câmara dos Deputados fica em torno de 60%. Esse índice compara o número total de representantes novos em uma legislatura com a composição da legislatura anterior. A renovação líquida, que mostra o número de candidatos à reeleição que foram derrotados no conjunto dos candidatos, tem índices históricos de 40%. São números que mostram que a renovação parlamentar é historicamente expressiva. E se estimulada por um sentimento misto de decepção e revolta com os políticos de maneira geral, podem crescer.