Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, janeiro 18, 2006

Editorial de O Estado de S Paulo

Lucidez e objetividade

S alvo uma ou outra exceção, os principais órgãos de imprensa no Brasil ignoraram a passagem talvez mais significativa da primeira entrevista concedida pela presidente eleita do Chile, Michelle Bachelet, no dia seguinte ao seu histórico triunfo. Numa coletiva apenas para jornalistas estrangeiros, em Santiago, ela enunciou com absoluta naturalidade a verdade solar que no Itamaraty do secretário-geral Samuel Pinheiro Guimarães seria considerado não apenas um despropósito, mas uma humilhante reverência ao imperialismo americano. "As agendas do Mercosul e da Alca não são incompatíveis", disse a nova líder chilena - que integra, por sinal, a ala esquerda do Partido Socialista.

"Estamos dispostos a fazer avançar a Alca", adiantou, "o que implica uma maior integração comercial e aduaneira entre todos os países de maneira a gerar mais riqueza e emprego na região e prosseguir na solução de muitos dos nossos problemas." Essas palavras, além de demonstrar que Bachelet, a segunda militante socialista a ascender ao governo depois da redemocratização do país (o primeiro é o atual presidente Ricardo Lagos), encara as realidades continentais com lucidez e objetividade, merecem atenção por dois motivos especiais. Um é que, em princípio, a Alca não seria prioritária para o Chile, graças aos acordos de livre comércio que já firmou com os Estados Unidos e ao fato de ser membro associado do Mercosul.

O outro motivo é a conexão que ela estabeleceu entre a Alca e o que afirmou ser a prioridade da política externa chilena no seu governo - a integração latino-americana. A se concretizar, será uma inflexão da linha adotada pelo presidente Lagos, que se voltou principalmente para os Estados Unidos e a União Européia. As razões de Bachelet decerto não se circunscrevem à esfera econômica e aos desdobramentos sociais do estreitamento de vínculos que ela defende. A sua referência à "solução de muitos dos nossos problemas" não estará dissociada das espinhosas relações bilaterais do Chile com o Peru e, notadamente, com a Bolívia, que reivindica a recuperação da saída para o mar perdida na Guerra do Pacífico, entre 1879 e 1884. Em 1978, Santiago e La Paz chegaram a romper relações. Com o Peru, a desavença diz respeito aos limites das respectivas águas territoriais.

O pensamento de Bachelet parece coerente com o dos defensores do livre comércio mundial também como forma de incrementar a solução negociada dos conflitos entre as nações. E revela um certo desassombro quando se consideram dois dados conjunturais. De um lado, a primeira eleição de um indígena para o governo boliviano, o quechua Evo Morales - que toma posse na próxima semana e cuja agenda externa permanece obscura, descontadas as suas simpatias por Fidel Castro e Hugo Chávez. De outro lado, a possível eleição, em abril, de outro nacionalista no Peru, o tenente-coronel Ollanta Humala, que vem atacando duramente o Chile na campanha em que desponta como favorito.

Pode-se imaginar, de resto, que ao sugerir implicitamente a reabertura das negociações sobre a criação da Alca, arquivadas pelos países do Mercosul, juntamente com a Venezuela, na Cúpula das Américas de novembro último em Mar del Plata, Bachelet se pôs a caminho de figurar na ampla lista negra do bufão do Palácio Miraflores, em Caracas. A previsão segundo a qual, por suas irrepreensíveis credenciais esquerdistas, para não falar na sua tragédia familiar sob Pinochet, Bachelet poderá dialogar com mais desenvoltura do que Lagos com o argentino Néstor Kirchner e o venezuelano Chávez talvez não se cumpra exatamente pelos atributos que a presidente mais uma vez acaba de revelar: a sua objetividade na abordagem dos problemas, com invejável distanciamento dos preconceitos ideológicos característicos dos novos representantes da velha esquerda na América Latina.

É bem verdade que nenhum dirigente estrangeiro se alinhou ostensivamente à candidatura socialista como Kirchner, cuja mulher, a senadora Cristina Fernández, chegou a subir literalmente ao palanque da chilena antes da primeira rodada eleitoral. E Bachelet já anunciou que Buenos Aires será o destino de sua primeira viagem oficial ao exterior. Resta esperar, sem muita convicção embora, que o seu pragmatismo sirva de exemplo àqueles dos seus futuros interlocutores na região cujo primarismo político-cultural até aqui os impediu de aprender com a notável experiência chilena.


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