Entrevista:O Estado inteligente

domingo, janeiro 22, 2006

Daniel Piza O lago e o erudito

OESP

E-mail: dpiza@estado.com.br Site: www.danielpiza.com.br

Passei uma semana na Casa do Lago, perto de Buri, no sudoeste de São Paulo, para descansar um pouco e curtir a família. Deu certo: a sensação é a de que passei um mês fora. A idéia da pousada, que pertence à associação Roteiros de Charme e já citei aqui antes, é ser a casa de campo para quem não quer os transtornos de ter uma casa de campo. E assim ela é. Tudo é bonito e repousante, confortável sem ser luxuoso, tranqüilo sem ser tedioso; e a comida, muito saborosa, com verduras colhidas na horta, queijos purunga feitos ali mesmo, doces e sorvetes caseiros. Borboletas, aves, plantas e flores oferecem um pequeno espetáculo para quem está na piscina, caminhando em meio ao mato ou no terraço de onde se observam os pássaros. Ali, lendo intermitentemente o volume II dos Ensaios Reunidos de Otto Maria Carpeaux (Topbooks/ UniverCidade), fiquei matutando sobre isso que se perdeu: a capacidade de observação livre e direta, de deter calmamente a atenção sobre o que nos cerca, de não se afobar até para que o cérebro seja mais rápido e preciso. Hoje todas as experiências são mediadas. Passam por uma "mídia", pela mediação de um equipamento e/ou de uma simbologia; é um mundo virtual, indireto. Até turismo tem sido feito por simulações tecnológicas.

Carpeaux também seria uma mediação, alguém a interferir no contato entre indivíduo e exterior. Com sua erudição, com seu enciclopedismo, seria como um personagem de Elias Canetti ou Italo Svevo, fechado em sua biblioteca porque inábil para o convívio social, inepto para a rotina real, uma traça de livros sem vocação para enfrentar a luz do sol. É comum a figura do intelectual que seguiu esse caminho porque desengonçado, feio ou tímido demais; inibido pelo mundo, buscou uma vivência paralela, na qual se sente superior aos demais, aos "normais". Para completar, raros são os intelectuais que, em vez de demonstrar os prazeres da leitura e da cultura, parecem provas vivas do contrário, fanatizados por ideologias, por sistemas, pela Grande Obra que ainda hão de escrever para salvar a humanidade. Mas Carpeaux não é professoral. Seus ensaios ocupam em média de três a cinco páginas, são escritos de modo claro e esclarecedor, dividem seu conhecimento sem citações desnecessárias. Esse austríaco batizado Otto Maria Karpfen – que chegou ao Brasil em 1939, aos 39 anos, fugindo da guerra, afrancesou o sobrenome e em apenas três anos aprendeu o português – era acima de tudo um humanista. Apesar da formação católica e da conversão posterior ao marxismo, escreveu o seguinte, num artigo curiosamente intitulado "O fim da história" aqui neste Estado, em 1958: "Por que esperar soluções finais?" Era o abandono ao idealismo que o tentara a vida inteira, presente na maioria dos seus textos, das suas interpretações da herança cultural européia, principalmente no volume I.

Estive uma vez em Peterhof, próximo a São Petersburgo, o palácio de verão da aristocracia russa, e dei uma volta no lago que Voltaire e a rainha Catarina II circundavam enquanto debatiam o papel da razão e do riso, as obras de Galileu e Shakespeare, e seguramente fofocavam muito sobre as cortes européias. O que há nos lagos que convidam tanto ao pensamento? Será a enganosa placidez da superfície, que sugere movimentos profundos? Voltaire passou os últimos anos de vida em Ferney, na Suíça, escrevendo cartas magistrais, e dizia que "cultivar nosso jardim" é essencial, sem com isso defender a alienação – afinal, foi um campeão da liberdade de expressão e religião, um cético que nunca deixou a cena pública, um iluminista que sabia que a lógica não explica todas as coisas e não pode travar a sensibilidade.

Diante de uma cultura sólida como a de Carpeaux, para a qual as 941 páginas do livro são metáfora perfeita, o leitor tende a se esfarelar. Eu saio anotando tudo: frases memoráveis, dúvidas, uma série de nomes de escritores que desconheço – o croata Krleza, o holandês Vestjdik, o tunisiano Ibn Khaldun. Ele também prefere Keats e Baudelaire entre os românticos, até porque foram além do romantismo ao beber nos clássicos. Partilha a admiração por livros como Petersburgo, de Biély, e lê Graciliano como um autor muito acima do regionalismo. Introduz os leitores daqueles anos 50-60 a hispano-americanos como Rulfo e Carpentier e demole o concretismo. Nota que o "segundo nascimento" de Machado, com Brás Cubas, veio da perda de fé. Exalta a grandeza de Heine como jornalista e aponta a confusão de Ortega y Gasset entre democracia e massificação. E afirma sem hesitar que "o grande erro alemão foi no fundo europeu", a união de nacionalismo e cristianismo. Felizmente, tem defeitos. O idealismo, que o leva a seguir a crítica de Croce e T.S. Eliot, associa demais arte e moral. Autores de pendor católico, como Octavio de Faria, ou politizados, como Pratolini, são superestimados. Não é verdade que Conrad não dominava a língua inglesa, ou que Mozart deve ser apreciado sem os arabescos. Sartre, Hemingway e Bandeira não estão em tal panteão. E o liberalismo não morreu, nem na filosofia nem na economia; está mais vivo do que nunca. Mas gostamos de ler Carpeaux até para discordar.

É claro que Carpeaux é complicado para o leitor iniciante, apesar de sua legibilidade e rigor. Sua cultura parece inatingível; ele elogia coisas demais, em vez de separar incisivamente as que ficarão para as novas gerações; seus comentários carecem de exemplos práticos, de paralelos com a vida, com as ansiedades cotidianas; sua cultura é a da literatura, da música erudita e da pintura, do "cânone ocidental", e nossa impressão é de que cinema, música popular, esporte ou noticiário político não valem seu tempo. Mesmo assim, sabemos que é alguém que vê a cultura como uma forma de expandir a sensibilidade, não de substituir as experiências reais pelas simbólicas. Simultaneamente, acredita no conhecimento como busca inerente à biologia do Homo sapiens sapiens, ser lingüístico, que equaciona e traduz o que vê. Ler um livro é viver uma experiência mediada, mas tanto melhor ele será se disser respeito à nossa experiência particular; a vivência direta não deveria ser oposta à simbólica. Não existe essa divisão nítida entre natureza e cultura.

Olhando a variedade de cores e tons nos jardins da Casa do Lago, o tremeluzir dos reflexos das árvores na água, a vibração das folhas dos pinheiros ao vento, Monet e Cézanne vêm à companhia e me ajudam a ver mais do que permitem meus olhos poluídos pelo senso comum; ou melhor, é esse cenário natural que me faz ver melhor Monet e Cézanne. Ali, à beira-lago, em meu "dolce far niente", um sanhaço cinza-azulado monta sua casa na palmeira. Ele parece dizer que há mais tempo do que imaginamos, se nossa imaginação não nos fizer perder tempo.

UMA LÁGRIMA

Para a atriz Shelley Winters, que ganhou dois Oscars. E outra, especial, para a grande wagneriana Birgit Nilsson, uma voz estupenda, pelo alcance e pela interpretação, que fica eternamente no Valhala – e na nossa DVDteca – como a Isolda regida por Karl Böhm e a Brünhilde por George Solti.

ZAPPING

Revejo alguns capítulos de O Tempo e o Vento, dirigida por Paulo José, em DVD recém-lançado, 20 anos depois da exibição da minissérie. O áudio não está perfeito, e há um ou outro problema de enquadramento (excesso de contraplanos), mas Glória Pires parece ter sido feita para ser Ana Terra e Tarcísio Meira para Rodrigo Cambará; a música é de Tom Jobim; e a adaptação respeita bastante as descrições e as falas de Erico Verissimo. Só falta agora relançar Grande Sertão: Veredas, de Walter Avancini – e o gancho dos 50 anos do livro de Rosa em maio é ideal. As duas minisséries são assim memoráveis porque não subestimam o telespectador.

Agora, por mais problemas que haja em JK, existe uma multidão que faria qualquer coisa para não ter de esperar o Bando de Bobos Brincando (BBB) para vê-la.

PINDORAMANIA

O estilista Alexandre Herchcovitch, na Folha, reage às cobranças de identidade nacional: "A brasilidade do meu trabalho existe apenas pelo fato de eu ter nascido aqui. Você acha que o Saint-Laurent, ao criar, pensava em fazer moda francesa? Duvido. E ninguém olha a roupa dele ou do Lacroix e diz: 'Nossa, que moda francesa!' Não entendo por que as pessoas insistem tanto nisso."

POR QUE NÃO ME UFANO

Otto Maria Carpeaux, que era um mestre da resenha, capaz de informar, contextualizar, analisar e opinar no mesmo texto, faz uma advertência que vem a calhar para alguns resenhistas e leitores brasileiros: "Só o pedantismo ou o despeito costumam denunciar pequenos erros e lapsos."


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