Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, janeiro 10, 2006

ARNALDO JABOR O amor é uma droga pesada

ESTADÃO

O verdadeiro amor é impossível, logo, só o amor impossível é o verdadeiro amor. Saí do cinema onde fui ver 2046, do chinês Wong Kar-wai, pensando nisso. Saí do cinema como de um sonho barroco, manchado, molhado por uma grande massa de cores e sons, de rostos, gestos, mãos, gemidos, dores e gozos. Saí como um drogado, viajando ainda num LSD, uma mescalina da pesada, saí de um milagre alucinado. Vi uma coisa rara: um filme que é o que ele conta. Explico: 2046 seria, no filme, o ano futuro em que tudo seria imutável, lembrado. E agora, quando escrevo, vejo que o tal lugar em 2046 é a própria obra. Entramos nesse filme como numa utopia, um lugar úmido, denso, esfumado, chuvoso, cambiante, onde estaríamos no lugar, na terra da paixão. Kar-wai é um grande artista que faz uma súmula de influências do melhor cinema ocidental e realiza um filme híbrido como Hong Kong, oriental para o Ocidente, diferente do que esperamos de um filme chinês. E por ele, como pelo primeiro Zhang Yimou, vemos que a cultura erótica chinesa atravessou 5 mil anos incólume, mesmo depois das revoluções maoístas e da China recente dos escravos globalizados. Muito mais sofisticado que europeus e americanos.

É um filme fragmentário sobre o fragmentário das emoções de hoje. Ali estão pedaços de Blade Runner, ecos dos Krells do Planeta Proibido (lembram, cinéfilos?), ali está Júpiter de 2001, ali estão emblemas e ícones dos filmes noir da Warner, ali está Godard na descontinuidade narrativa, ali estão confusos cacos de Ocidente e Oriente, uma Hong Kong da alma, músicas tropicais, Nat King Cole e ópera, Siboney e a Norma, de Bellini. Que banho... que cineasta admirável!

Em 2046, tema e matéria se misturam numa massa indissolúvel.

Tudo nesse filme é uma exposição da "parcialidade" do erotismo contemporâneo. (Exemplo brasileiro: a bunda substituindo a mulher inteira). À primeira vista, parece uma louvação da perversão, do fetichismo, do erotismo das "partes", do "amor em pedaços". No entanto, Kar-wai está além do fetichismo, além da perversão. Ele retrata (sem teses, claro) a imagerie do erotismo contemporâneo que "esquarteja" o corpo humano. Vejam as artes gráficas, fotos de revistas de arte, como Photo (ou em Tarantino), em que tudo é (reparem) decepado, dividido, pés, sapatos escarpins negros, unhas pintadas, bocas vermelhas, paus, seios, corpos imitando coisas, tudo solto como num abstrato painel. Tudo evoca a impossibilidade saudosa de um "objeto total", da pessoa inteira.

Uma das marcas do século 21 é o fim da crença na plenitude, na inteireza, seja no sexo, no amor e na política.

Aí, chega o Kar-wai e, poeticamente, intui esse novo mundo afetivo e sexual.

Kar-wai não sofre por um tempo sem amor, como nos filmes que "acabam mal", sem happy end. 2046 não lamenta a impossibilidade do amor. Não; ele a celebra. Para Kar-wai (e para muitos de nós), só o parcial é gozoso. Só o parcial nos excita, como a saudade de uma plenitude que não chega nunca. Kar-wai assume essa parcialidade, a incompletude como única possibilidade humana. E acha isso bom. E, num filme romântico, nostálgico e dolente, goza com isso. Nada mais delicioso que o amor impossível. E, como canta o samba, "quem quiser conhecer a plenitude vai ter de sofrer, vai ter de chorar..." Ou, "O amor é uma droga pesada", título de livro de Maria Rita Khel.

Kar-wai nos apresenta a droga pesada do século 21: a paixão.

Ele é o quê? Um romântico-punk, um pierrô pós-utópico? É por aí... um chinês neurótico dando aula para ocidentais.

O amor em Kar-wai, para ser eterno, tem de ficar eternamente irrealizado. A droga não pode parar de fazer efeito e, para isso, a "prise" não pode passar. Aí, a dor vem como prazer, a saudade como misticismo, a parte como o todo, o instante como eterno. E, atenção, não falo de masoquismo; falo de um espírito do tempo.

Hoje em dia, não há mais uma explícita, uma clara noção do que seria felicidade, como antigamente. O que é ser feliz? Onde está a felicidade no amor e sexo? No casamento? Em 2046, o ano mítico do filme?

Kar-wai não lamenta o fim da felicidade, mas o saúda. Como diz a música do Vinicius, "é melhor viver do que ser feliz...", coisa que muito careta não entende.

Esse filme mostra que hoje, sem sabermos com clareza, achamos que é bom ansiar por um gozo desconhecido, é bom sofrer numa metafísica passional, é bom a saudade, a perda, tudo, menos a insuportável felicidade. Assim, o amor vira uma maravilhosa aventura de utopia, uma experiência religiosa, como a fé, que resiste a todos os massacres e terremotos e guerras. Em vez da felicidade, o gozo, o gozo rápido do sexo ou o longo sofrimento gozoso do amor. Como no filme, não há mais felicidade; só as fortes emoções, a deliciosa dor, as lágrimas, hotéis desertos, luzes mortiças, a chuva, o nada.

Como esse filme aponta, o amor hoje é um cultivo da "intensidade" contra a "eternidade". Toda a cultura do cinema tende para a idéia de redenção, esperança, mas 2046 não lamenta o fim do happy end. Não. É bom que acabe essa mentira do idealismo romântico americano, para animar o otimismo familiar e produtivo, pois na verdade tudo acaba mal na vida. Não se chega a lugar nenhum porque não há aonde chegar.

Tudo bem buscarmos paz e sossego, tudo bem nos contentarmos com o calmo amor, com um "agapê", uma doce amizade dolorida e nostálgica do tesão, tudo bem... Mas, a chamada droga pesada amor só vem com o impalpável. E isso é bom. Temos de acabar com a idéia de felicidade fácil. Enquanto sonharmos com a plenitude, seremos infelizes. Só o amor impossível nos põe em contato com um arco-íris de sentimentos desconhecidos. A felicidade não é sair do mundo, como privilegiados seres, como estrelas de cinema, mas é entrar em contato com a trágica substância de tudo, com o não-sentido, das galáxias até o orgasmo.

E tem mais... este artigo não é pessimista. Temos de ser felizes sem esperanças.

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