Entrevista:O Estado inteligente

sábado, dezembro 13, 2008

Uma Mudança Extraordinária, de William Bernstein

Instinto selvagem
Um livro mostra que o comércio funcionou como um dos mais eficientes impulsos evolutivos do ser humano


Marcio Aith

Mihai Barbu/ Reuters
DA SEDA À JACUZZI
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É destruidora a tempestade que se abateu, com a crise financeira, sobre a troca mundial de bens e serviços – o comércio, aquela atividade social definida pelo autor português Fernando Pessoa como distintiva, ao lado da cultura, das sociedades civilizadas. Tome-se o exemplo do transporte marítimo de cargas. Em abril, no auge da alta das commodities, grandes companhias de navegação comercial, como a Maersk e a Hapag-Lloyd, cobravam 2 000 dólares para carregar um contêiner da Ásia para a Europa. Esse preço caiu para 500 dólares. Os estaleiros, que até há pouco obtinham lucros exuberantes, hoje nem sequer têm dinheiro para terminar a construção de 2 000 cargueiros. Sobram contêineres e navios; sumiram os comerciantes interessados em alugá-los. Após atingir um ápice histórico de quase 11 793 pontos em maio, o Baltic Dry, o melhor termômetro do comércio mundial, despencou para 733 pontos em novembro. Esse índice mede a atividade do transporte marítimo de matérias-primas para as indústrias. Não bastasse a crise, vieram os piratas somalis. Só neste ano, mais de sessenta embarcações foram seqüestradas por eles nas águas do Chifre da África, causando um prejuízo de 15 bilhões de dólares.

Quando a fase atual do comércio internacional é vista assim, secamente, sem a lente da perspectiva histórica – ou, ao contrário, equiparada aos seus momentos mais sombrios –, parece que a humanidade decidiu, por trauma de seus próprios excessos, tolher o que Adam Smith dizia ser sua "propensão intrínseca para barganhar, permutar e trocar uma coisa por outra". Engano. O comércio não corre riscos. Ele está de ressaca. Produto do mais básico bom senso, essa conclusão ganha argumentos sólidos e apetitosos em Uma Mudança Extraordinária – Como o Comércio Revolucionou o Mundo, livro mais recente do historiador financeiro William Bernstein (tradução de Patrícia Sá; Campus; 332 páginas; 85,90 reais). Bernstein descreve como, ao longo da história, os consumidores ávidos por novidades pagaram fortunas por produtos cuja origem exata desconheciam – papagaios que falavam latim, um sucesso entre os romanos, ou lingotes de cobre usados para confeccionar armas na Mesopotâmia. E relata a incrível logística para fornecê-los. No início da era cristã, levava-se dezoito meses para que a seda embarcada no sul da China aportasse em Óstia e Puteoli, no Império Romano. O produto passava por chineses, indianos, gregos e árabes antes de chegar ao destino, por um preço equivalente a 100 vezes seu custo original. A maioria dos romanos acreditava que o tecido suave crescia diretamente nos galhos da amoreira, sem perceber que a árvore era apenas a casa e o alimento do bicho-da-seda. A atração humana por produtos básicos vem de tempos imemoriais: da seda ao "luxo" da foto que ilustra esta matéria, durante feira realizada na Romênia, país que até há pouco foi um dos barracos do bloco soviético.

O CAMINHO SEM VOLTA
Campanha contra o protecionismo na Inglaterra do século XIX

O livro não se propõe a debater a atual crise econômica internacional ou ao ciclo de valorização de commodities que se encerra. Mas há um paralelo impressionante entre os motivos que conduziram o mundo à turbulência atual e vários eventos históricos pesquisados por Bernstein. Exemplo disso foi o modelo de financiamento da Companhia Holandesa das Índias Orientais, uma das grandes organizações de comércio no século XVII. A essência das finanças holandesas consistia em dividir, em cotas, o custo das grandes navegações. As cotas dissiparam o risco do negócio, amenizando o estrago da perda de um navio ou um resultado comercial malsucedido. Os holandeses também estabeleceram os primeiros mercados futuros organizados da história financeira mundial. Vendiam, por exemplo, arenque antes mesmo de sua captura, por meio de títulos que podiam ser negociados livremente. Eram, na verdade, derivativos de antiquário, precursores dos títulos que alavancaram a bolha que acaba de estourar.

Embora o livre-comércio beneficie a humanidade, também produz perdedores – e não se pode esperar que aceitem de maneira passiva sua derrota. Mas o comércio, mostra o livro de Bernstein, é um impulso irredutível e intrínseco ao ser humano. Tão básico quanto as necessidades de comida, abrigo, intimidade sexual e companhia.

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