Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, dezembro 24, 2008

Retrospectiva 2008 Economia


O ano em que o
trem quase parou

Bolhas financeiras resultam de uma combinação
de euforia, falta de regras, desconhecimento de
muitos e esperteza de poucos. Quando estouram,
produzem crises doloridas. A atual interrompeu a
fase mais veloz de criação de riqueza da humanidade,
que já durava seis anos


Giuliano Guandalini

Joshua Lott/ Reuters
A CARA DA CRISE
Mulher assina pintura de Richard Fuld, ex-presidente do Lehman Brothers: a maior falência da história



Foi como se um maquinista puxasse repentinamente o freio de uma locomotiva em velocidade máxima. Assim, abruptamente, foi interrompida em 2008 a fase mais veloz de criação de riqueza da humanidade. Foi o fim de um ciclo que alavancou mais de 400 milhões de pessoas da miséria. O maior terremoto financeiro desde o crash de 1929 começou em setembro passado com a quebra do centenário Lehman Brothers. Desde então, outros bancos de investimento de Wall Street foram varridos do mapa ou mudaram de ramo. Outras companhias financeiras que pareciam inabaláveis, como a seguradora AIG e o Citibank, só se salvaram após a intervenção do governo. Assim como as montadoras GM, Ford e Chrysler. A crise corroeu metade do valor de mercado das bolsas no mundo. A taxa de desemprego americana chegou a 6,7%, a maior desde outubro de 1993. Não é a primeira vez que a economia mundial salta diretamente da euforia para a depressão. Crises são freqüentes, resultado da combinação entre ganância, irracionalidade, desconhecimento de muitos, esperteza de poucos. Esta crise, como outras, resultou da falta de segurança nas regras do jogo. A confiança necessária entre emprestadores e tomadores de empréstimo descambou para o descontrole. Dívidas foram travestidas de crédito. Crédito foi dado a quem não podia pagar.

Dessa anomalia se formou uma bolha especulativa sem precedentes, a partir do coração financeiro dos Estados Unidos, engrenagem fabulosamente produtiva, com 11 trilhões de dólares de PIB e – torçamos – uma inesgotável capacidade de auto-regeneração. A face desenhada de Richard Fuld (foto), ex-presidente do Lehman Brothers, que quebrou na maior falência da história, tornou-se simbólica. Entre salários, bônus e ações, ele embolsou 485 milhões de dólares até setembro passado. Foi-se a crença nos Fulds de Wall Street. Assim como na teoria segundo a qual países emergentes como o Brasil, a China, a Índia e a Rússia sairiam imunes de um eventual abalo americano. Da China, onde as importações minguaram 18%, na maior retração desde 1993, à pequenina e fria Islândia, dragada pelos excessos financeiros, todos sofreram.

==A arte de ver e não enxergar

Até o papa anteviu a crise financeira mais prevista
da história. O desafio nunca foi o de apontar a existência
de uma bolha, mas o de desinflá-la sem que estourasse


Benedito Sverberi

Fotos Piotr Snuss/ Reuters e J. Scott Applewhite/AP

TROVOADA NO HORIZONTE
Jean-Claude Trichet, do banco central europeu, e Henry Paulson, secretário do Tesouro americano: o que vocês não estão
enxergando agora?




O que parecia ser uma leve infecção transformou-se em um câncer em estágio de metástase. A crise de Wall Street virou crise global. Diante do terremoto financeiro, convencionou-se dizer que o barômetro dos gurus, dos magos e dos profetas não captou os sinais do vendaval iminente. Não é o que mostram os fatos. A atual crise financeira foi a mais prevista da história. Poucos não identificaram seus sinais. Do Fundo Monetário Internacional ao papa. O papa? Sim. Em 1985, o então cardeal Joseph Ratzinger, atual papa Bento XVI, afirmou, em artigo, que "uma economia desregulada entraria em colapso por seus próprios pecados". Há quatro anos o economista Nouriel Roubini vinha prevendo que o sistema financeiro sofreria um abalo. Errou durante três anos. Um dia tinha de estar certo.

Era comum aos melhores economistas a constatação de que os sérios desequilíbrios do mundo financeiro em algum momento dariam dor de cabeça. Mas, como é clássico nesses momentos, ninguém tem ao mesmo tempo lucidez e poder suficientes para mandar parar a roda da fortuna – até porque, com o ciclo de prosperidade tirando da miséria 50 000 pessoas por dia em todo o mundo, seria uma temeridade correr o risco de estar errado ao estragar a festa. O período de prosperidade, enquanto existiu, alimentou-se principalmente de um formidável eixo de riqueza de dimensões planetárias, tendo de um lado os Estados Unidos e de outro a China. Como isso funcionava? A China acumulava superávits comerciais cada vez maiores e usava os dólares obtidos para comprar títulos do Tesouro americano. O resultado imediato disso era o aumento da liquidez, ou seja, da oferta de crédito farto e barato na economia americana. Era quase invencível a sensação de que esse dínamo duraria para sempre.

Como também é clássico nesses momentos de oferta excessiva de crédito, os bens materiais passaram a atingir nos mercados valores bem acima daquilo que historicamente se pagou por eles. Foi justamente a valorização excessiva e crescente dos imóveis – uma curva ascendente que parecia não perder fôlego nunca – que alimentou toda a crise. Muitos americanos começaram a ver suas casas não como moradias, mas como um caminho para obter empréstimos bancários cada vez mais volumosos. Os bancos, por sua vez, viam nas casas dos credores garantias mais do que suficientes para conceder mais e mais empréstimos – afinal, os preços dos imóveis só conheciam uma direção: o alto. Tudo funcionaria bem se ninguém duvidasse da premissa de que os imóveis continuariam sempre se valorizando. Mas alguém duvidou e a desconfiança começou a se alastrar. O que parecia um sistema sólido passou pouco a pouco a ter os contornos de uma bolha – e ela estourou sem que se tentasse a sério desinflá-la. Em 2009, o desafio será recolher os cacos e reinventar o sistema financeiro mundial de modo que ele produza mais riqueza com menos riscos.

===O dicionário da crise financeira

As palavras que é preciso conhecer para entender
como um modelo baseado na confiança mútua entre
credores e tomadores de empréstimos transformou-se
em um sistema, em sua fase terminal, baseado na má-fé



Agências de rating – Deveriam aferir a capacidade de países e empresas pagarem seus débitos em dia, mas se especializaram em distribuir notas máximas (AAA) para títulos e empresas podres e, assim, burlar a vigilância do público e das autoridades.

Bolsa russa – Todas as bolsas andam ruças, mas a russa vai pior ainda. Suas negociações foram interrompidas inúmeras vezes. A desvalorização acumulada desde o seu pico em maio é de 70%.

Casa – Bem imóvel que era usado para abrigar famílias, mas que, dado como garantia para empréstimos, passou a ser usado como caixa eletrônico 24 horas. Com a crise, voltou a servir apenas para morar.

Depressão Ah, que bom quando essa palavra se referia apenas ao distúrbio mental caracterizado por adinamia, desânimo e sensação de cansaço – grave, porém facilmente diagnosticável e tratável pela medicina. Agora, a depressão é o grande fantasma do mundo, pois traz desemprego em massa, miséria e até fome – e não é nem facilmente diagnosticável nem tratável.

Derivativos Nasceram como uma brilhante invenção capaz de diluir o risco dos investidores, aumentando assim a segurança de todo o sistema financeiro. Mentes mais espertas os transformaram em armadilhas que serviam não mais para diluir, mas para mascarar o risco.

Stringer Shanghai/Reuters

Descolamento – Teoria segundo a qual os países emergentes, como o Brasil, a China, a Índia e a Rússia, se fortaleceram tanto que se tornaram imunes aos efeitos da crise americana. Os argumentos ainda são válidos. O problema são os fatos. Eles insistem em desmentir a teoria.

Lia Lubambo

Etanol Encontrado em bebidas como cerveja e aguardente. Costuma dar ressaca. Foi o que aconteceu com a versão usada como combustível de motores de explosão. Quando o petróleo estava a 147 dólares o barril, era a salvação da lavoura. Até os donos do Google se interessaram em plantar cana no Brasil. Com o petróleo novamente barato, o entusiasmo com o etanol despencou na mesma proporção.

Hedge funds Como os derivativos, esses fundos nasceram para proteger ("hedge", em inglês) os investidores das bruscas variações dos mercados tradicionais de ações, câmbio e títulos de governo. Eles colocam o dinheiro do investidor também em mercados de ouro, grãos, petróleo e até em obras de arte. Vinham se saindo até bem no decorrer da crise até que em dezembro estourou uma megafraude justamente em um hedge fund dirigido pelo falsário Bernard Madoff, que deu prejuízo de 50 bilhões de dólares na praça.

Divulgação

Islândia Até o início de 2008, era mais lembrada como o inóspito e gelado país de onde vinha a série infantil de sucesso LazyTown. Seus 300.000 habitantes viviam tranqüilos com um PIB per capita de 55 000 dólares e com seu primeiro lugar no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Do dia para a noite, descobriu-se que praticamente todos os islandeses viviam em uma bolha financeira maior do que o próprio país. Era o Lazy Country. A bolha estourou. A coroa islandesa perdeu metade de seu valor. A Islândia tornou-se o primeiro país desenvolvido a ser socorrido pelo FMI nas últimas três décadas.

Manat Na Bíblia, o maná foi um alimento que Deus fez cair dos céus sobre os fiéis no deserto. Significa algo prazeroso e vantajoso. O manat do Turcomenistão foi a moeda que mais se desvalorizou (queda de 64% no ano) no mundo. Depois, é claro, do dólar zimbabuano. Mas este faz tempo que não vale nada mesmo.

Marolinha Tsunami, na língua falada pelo governo brasileiro. É com essa palavra que os efeitos da maior crise mundial desde 1929 foram inicialmente descritos pelo presidente Lula e pelo ministro Guido Mantega.

Fred Prouser/fFSP/Reuters

Myron Scholes – Fuja dele! Recebeu o Nobel em 1997 por desenvolver um modelo que reduzia o perigo das operações com derivativos. Com seus ensinamentos, já quebrou dois fundos: o Long Term Capital Management (LTCM), em 1998, e o Platinum Grove Asset Management, em novembro passado.

Ninja Organização secreta marcial que habitava as províncias do Japão feudal do século XIV, cujos membros eram conhecidos por suas habilidades de infiltração e sabotagem. Os empréstimos "ninja" (de "no income, no job, no assets", ou seja, para pessoas sem renda, sem emprego e sem bens) se infiltraram e sabotaram a ordem financeira internacional em 2008.

Toshifumi Kitamura/AFP

Nouriel Roubini O Doutor Apocalipse, economista que teve a fama catapultada por ter previsto que a bolha mobiliária americana se transformaria numa crise sistêmica. Foi descrito em reportagens como detentor de uma aura lúgubre e de feições de quem vive atormentado pela clarividência. O Facebook revelou a outra face de Roubini, aproveitando, feliz, as coisas boas da vida. Antes que o mundo acabe.

Recessão – É um período de diminuição prolongada no nível de atividade econômica. Mais leve que a depressão. Dizem que é um pouco como pornografia, você percebe quando a vê. Nos Estados Unidos, não basta vê-la para confirmá-la. É preciso atestado oficial do NBER (National Bureau of Economic Research). OS EUA estão em recessão desde dezembro de 2007.

Stockton, Califórnia A cidade do "porto do sol nascente" transformou-se numa estrela cadente. É a região mais castigada pelo estouro da bolha imobiliária americana, onde as casas perderam metade de seu valor desde 2005.


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Fotos Bernd Kammerer/Samantha Sin/Kai Pfaffenbach/Richard Drew/Raouf Mahmoud/Katsumi Kasahara/Toru Yamanaka/Thaksinakhaikew/Jefferson Bernardes/Preview.com/George Doyle/Getty Images/RF/Bettmann/Corbis/Latinstock
Certifica.com

==O retorno dos velhos fantasmas

Idéias e personagens da Grande Depressão
voltam como carne enlatada


Renata Moraes

Fotos Bettmann/ Corbis/ Latinstock e Lucy Oemoni/ AP

À SOMBRA DOS ANOS 30
O crash de 1929 em Wall Street (à esq.) e as latas de Spam:
assombrações do passado




John Maynard Keynes. Spam. Intervencionismo. New Deal. Franklin Delano Roosevelt. Até setembro passado, essas palavras e personagens, associados à Grande Depressão americana, eram apenas objeto de curiosidade acadêmica. Não mais. A crise financeira colocou a economia dos anos 30 de volta à mesa de jantar. Literalmente. As vendas do Spam, carne de porco (bastante temperada) lançada em 1937 pelo empresário Jay Hormel, voltaram a crescer. O enlatado (cujo nome comercial é uma abreviação de spiced ham, ou presunto condimentado) foi o prato principal das famílias empobrecidas nos anos 30 e alimentou as tropas americanas na II Guerra Mundial porque era – e continua sendo – a maneira mais barata de ingerir proteína nos Estados Unidos (uma lata de 340 gramas custa 2,40 dólares). Com o longo período de prosperidade das últimas décadas, o Spam havia sumido do cotidiano da classe média (os mais jovens conhecem apenas outro tipo de spam, aquelas mensagens eletrônicas insolentes e indesejáveis).

O nome do economista inglês John Maynard Keynes (1883-1946) também voltou, feito carne enlatada, às prateleiras das idéias econômicas. A moda agora é dizer que Keynes, autor da genial Teoria Geral, teria ressuscitado devido ao colapso do sistema financeiro neoliberal imperialista satânico ultragaláctico. Keynes foi o mentor do New Deal, o plano de recuperação da economia criado por Franklin Delano Roosevelt para enfrentar a Grande Depressão. Várias de suas experiências heterodoxas serviram de referência aos grandes pacotes de ajuda anunciados pelos governos no mundo. Mas a crise dos anos 1930 foi algo drástico e improvável, similar a um acidente aeronáutico que só se consegue explicar como resultado de uma série de equívocos e falhas concomitantes. Como sobejamente demonstrado pelos historiadores, as autoridades econômicas cometeram um erro seguido de outro. O resultado foi uma queda de 45% no PIB americano entre 1929 e 1933, e um em cada quatro trabalhadores ficou desempregado. A crise atual é séria, que não reste dúvida, mas o mundo não precisa enfrentar mais monstros do que aqueles que já tem à frente.

====O país da blindagem
e da marola

O Brasil conta com a eficiência privada e um arsenal
oficial poderoso para evitar o contágio do atoleiro externo


Cíntia Borsato

Fotos Jose Silva/Folha Imagem e Fernando Bizerra Jr/EFE
Sintonia
Roberto Setubal, do Itaú, e Pedro Moreira Salles, do Unibanco:
fusão e aposta no futuro do país. À direita, Mantega e Meirelles:
trabalho conjunto



Volte apenas cinco meses no tempo. Os jornais brasileiros noticiavam números recordes de venda de carros, falta de mão-de-obra especializada e queda acentuada na cotação do dólar. Retroceda um pouco mais, até maio. O Brasil conquistava enfim o cobiçado grau de investimento, selo de maturidade econômica perseguido desde a criação do real, em 1994. Naquele momento, o principal índice da Bolsa de São Paulo, o Ibovespa, ultrapassou os 73.000 pontos. O Brasil parecia hermeticamente vedado ao crash financeiro. O presidente Lula chegou a dizer que o tsunami externo aportaria aqui como uma simples "marolinha". Em setembro, entretanto, tudo mudou. Depois da falência do Lehman Brothers, os grandes bancos foram contagiados pela desconfiança recíproca e deixaram de fazer circular o crédito em todo o mundo. No Brasil, minguaram os recursos para os financiamentos. A Bovespa já perdeu 45%, e o dólar subiu 50%. A economia do país, que até o terceiro trimestre crescia a taxas superiores a 6%, corre o risco de estagnar-se no começo de 2009.

A blindagem brasileira era uma lenda? Não é bem assim. O Brasil possui hoje um arsenal poderoso que vem sendo utilizado, sem parcimônia, para reduzir o contágio do atoleiro externo. O Ministério da Fazenda, comandado pelo ministro Guido Mantega, diminuiu os impostos da classe média e deu benefícios tributários para que as empresas não deixem de investir. O Banco Central, presidido por Henrique Meirelles, liberou 100 bilhões de reais que antes os bancos deviam deixar depositados como margem de segurança e ainda tem utilizado as reservas internacionais de mais de 200 bilhões de dólares para evitar uma depreciação descontrolada do real. Não é apenas o setor público que está mais resistente. As empresas também são mais sólidas. Um exemplo está no setor financeiro. Os bancos locais, ao contrário de seus pares americanos, não se enrolaram na especulação financeira e seguem rentáveis. Nesse sentido, um fato promissor foi a fusão do Itaú com o Unibanco, dando origem à maior instituição financeira da América Latina.

A freada brusca na economia trouxe, sem dúvida, um desalento amargo para uma geração de jovens brasileiros que, pela primeira vez na vida, sentia o gostinho de viver em uma nação em rápido crescimento e confiante em seu futuro. Uma vez passado o pesadelo, no entanto, nada impede que o país volte a acelerar rapidamente a sua locomotiva. Diante do colapso generalizado lá fora, 2009 pode não ser tão ruim.

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