Barack Obama virou commodity e está em liquidação nos EUA. Anúncio na televisão avisa que a porcelana decorativa da eleição de Obama está por um preço especial; o “New York Times” anuncia promoção da sua primeira página com o famoso “Barreira racial cai em vitória decisiva” e oferece xícaras com a foto do presidente. O rosto dele é onipresente nos shoppings, nas ruas, nas livrarias.
A história do menino de pai africano e mãe americana, que vê o pai apenas uma vez, vai à África atrás de suas origens, faz carreira política de sucesso e se torna presidente já tem uma versão em livro infantil. Michelle, que no começo da campanha era criticada por declarações que não cabiam no figurino de primeira-dama, já tem biografia nas bancas das livrarias. Fotos da nova primeira-família estão à venda em bancas, lojas de rua e boas casas do ramo. No Central Park se pode comprar uma fotomontagem em que o ex-presidente John Kennedy e o reverendo Martin Luther King olham para Obama, que está no meio dos dois. Pode-se também ter uma versão mais negativa. Os três estão juntos, mas Kennedy e King olham para lados opostos e estão de costas para Obama. Camisetas com frases e fotos, chaveirinhos, bolas, pode-se comprar qualquer coisa com o sucesso da temporada. Nas livrarias, o primeiro livro autobiográfico de Obama está na estante de assuntos afro-americanos. Na Universidade de Columbia, está na estante dos mais vendidos do ano naquela livraria.
O produto Obama vende bem neste início do que os economistas, em coro, projetam ser a pior crise desde a grande depressão. Enquanto Obama virou commodity em bolha de consumo, o presidente em exercício prepara a mais patética saída do cargo da história recente americana. Na Casa Branca, o fantasma que ronda George W. Bush é o de Herbert Hoover, o presidente que deixou a terra arrasada para o sucessor Franklin D. Roosevelt.
Mas Bush ainda sonha com uma saída honrosa, e convoca fantasmas mais ilustres. Disse num discurso recente que tudo começou com um George W. — no caso, W de Washington — e está terminando o governo de outro George W. Difícil entender o sentido da convocação histórica. Bush, nos últimos tempos, tem dado entrevistas introspectivas, admitindo erros, com voz de lamento, ar de fim de feira. Nada está terminando, a não ser esse infeliz governo, que tem uma dramática coleção de erros em todas as áreas. O tom de algumas entrevistas permite imaginar que ele já começou a sofrer de uma espécie de DPG, depressão pós-governo. O governo Bush não é ruim apenas porque termina em crise econômica ou em duas guerras inconclusas. Ele foi ruim sistematicamente pelas escolhas que fez em diversas áreas.
“Comprem, últimos dias, encomendem agora”, avisa o vendedor das porcelanas decorativas com as fotos do presidente eleito. Depois de terminado o prazo, informa o anúncio, os pratos serão queimados. “Essa é a última chance de guardar esse momento histórico.” E a propaganda termina com depoimentos de famílias brancas e negras dizendo que não pensavam em ver tão cedo um evento como esse.
O evento é a eleição do primeiro presidente negro dos Estados Unidos. Ele chega após uma longa trajetória de avanços na formação de canais de ascensão que criaram uma elite negra poderosa. Obama está longe de ser avis rara. São inúmeras as histórias de sucesso e muitos os afro-americanos prontos para postos de comando no país, como mostram várias de suas nomeações. Mas a distância ainda é imensa e há estatísticas assustadoras.
Como no Brasil, quem mais está em risco é o jovem do sexo masculino entre 16 e 24 anos. Um dado espantoso está no livro recém-lançado (ainda sem tradução no Brasil) “Waiting for Lightning to Strike. The Fundamentals of Black Politics”, do escritor Kevin Alexander Gray: “Nacionalmente, um em cada três jovens negros de 16 a 24 anos está sob algum tipo de supervisão da Justiça Criminal. Há dez anos era um em cada quatro.” Gray, intelectual da velha esquerda negra americana, foi diretor da campanha de Jesse Jackson. Ele alerta que, a partir da escolha de Obama nas primárias, começou a se fazer um imenso silêncio nos EUA sobre a trajetória do movimento negro. O ponto dele é que, agora, fala-se de cada detalhe da saga pessoal de Obama, como se isso resumisse e resolvesse tudo; como se não houvesse um longo e doloroso processo ainda inconcluso, e assustadores sinais de perigo.
Sobre Obama pesam expectativas demais. Ele terá que consertar uma economia em frangalhos, encerrar guerras pantanosas e passar por testes de desempenho que são maiores para ele.
Na rica Manhattan, o ambiente sombrio de crise parece ser mais visível do que na ensolarada e latina Miami. Na Flórida, as lojas cheias, os engarrafamentos nos shoppings e as filas nos caixas mostram a face de uma economia mais normal. Mesmo na Flórida, onde Obama ganhou com margem menor de votos, os partidários de McCain já recolheram seus cartazes e ressentimentos, e aguardam o novo governo. Nas duas cidades, tão diferentes em tudo, há um ponto em comum: o rosto de Obama virou produto que alavanca vendas.
Com Leonardo Zanelli