Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, dezembro 24, 2008

Retrospectiva 2008 -Internacional-De pernas para o ar



Vilma Gryzinski

Michael Kappeler/AFP

No ano em que vivemos alucinadamente, os adjetivos mais usados foram histórico e volátil. Aplicaram-se a tudo, inclusive de maneira intercambiável, à eleição de Barack Obama e à crise financeira. Em algum momento devem ter sido empregados para o petróleo a 150 dólares o barril – mas quem ainda se lembra disso? O fim das seguintes coisas, boas e ruins, foi anunciado: o capitalismo, o racismo e o mundo propriamente dito (este seria engolido por um buraco negro gerado pelo LHC, o gigantesco acelerador de partículas que entrou em funcionamento na Europa em setembro). Como continuamos aqui para contar a história, houve um certo exagero. As palavras mais feias incorporadas à linguagem de quem nem sabia que essas pragas existiam foram derivativos e securitização. O momento mais bonito foi o planeta iluminado como uma lanterna vermelha no espetáculo de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim, lembrando-nos de que estamos sempre de pernas para o ar. O mais incompreensível, pelo menos para a maioria dos mortais, foi exatamente o que faria o acelerador de partículas (resposta: observar o bóson de Higgs, que, tal como o dinheiro aplicado em certos fundos de investimento, ninguém ainda tem certeza se existe). Vai demorar até assimilarmos o estranho alinhamento astral que insuflou sentimentos tão extremos e contraditórios – ora o medo de ver ruir o arcabouço econômico da humanidade, ora a inspiração diante de um líder político americano de quem as pessoas não apenas gostam, mas se sentem melhores pelo simples fato de fazê-lo. No ano em que tantos e tão poderosos tremeram, vale um adendo sobre o humano pecado da soberba: o LHC, a máquina de brincar de Deus, ficou pouco tempo em funcionamento. Deu um defeito na instalação elétrica.

 

Sonhando acordados

Jonas Karisson

Muitos anos depois, cada um de nós ainda haverá de se lembrar daquele momento em que pensou: ele vai ganhar. A idéia foi quase inevitavelmente acompanhada de um sorriso, no meio do caminho entre o espanto e o encantamento, às vezes de um suspiro do alívio que sentimos quando o "impossível" se torna não apenas possível como inevitável. Barack Hussein Obama tem o dom de provocar esse tipo de sonho coletivo, desafiando inclusive as evidências racionais. Sim, sabemos que ele é produto do ambiente mais convencionalmente político que se possa imaginar – o Partido Democrata, e ainda por cima de Chicago, uma espécie de vertente "brasileira", no pior sentido possível, da política americana. Sim, sabemos que sua campanha foi engendrada por figurões do partido, que foi movida a dólares – 750 milhões, exatamente – e que tudo, do slogan de "mudança" à ocupação absoluta dos espaços reais e virtuais de divulgação, saiu da cabeça de marqueteiros brilhantes. Sim, sabemos que tem sido cauteloso, ou até – céus – conservador, ao escolher uma equipe chapa-branca, por assim dizer. Mas pelo menos até a posse, em 20 de janeiro, todo mundo tem o direito de se admirar com a história do filho de uma mulher com nome de homem (Stanley Ann), que nasceu no Havaí, foi criado na Indonésia, tentou recuperar no Quênia a memória do pai que mal conheceu, usou cabelo black power em Harvard e acabou eleito presidente dos Estados Unidos.

 

A maldição dos carecas

Evan Vucci/AP

A economia em 2008 se dividiu entre a real e a surreal – e todos provavelmente lembrarão até o fim da vida o exato momento em que sentiram estar passando do primeiro para o segundo grupo. Para alguns, foi quando o nome do secretário do Tesouro dos Estados Unidos (o careca de óculos na foto), Henry Paulson, se tornou associado a "pacote", "comitê de salvação", "700 bilhões de dólares" e outras coisas normalmente inconcebíveis. Para outros, foi quando o presidente do banco central americano, Ben Bernanke (o careca de barba atrás de Paulson), deixou de ser sinônimo de sólido especialista na Depressão dos anos 30, que nunca, jamais deixaria a mesma praga acontecer, e virou o sujeito em quem não se pode confiar muito. Os mais atentos não deixaram de sentir um arrepio na espinha quando Neel Kashkari (o careca atrás da manifestante de cor-de-rosa) se tornou simultaneamente o primeiro americano de origem indiana a ter um cargo no governo e titular do inimaginável posto de subsecretário para a Estabilidade Financeira. O horror, o horror.

 

A estrela da ursa maior

Landov

Ame-se ou odeie-se Sarah Palin, uma coisa é certa: a mulher não irá embora tão facilmente quanto o pessoal da segunda coluna gostaria. Saída do Alasca, o que nos Estados Unidos é praticamente sinônimo de nada, ela irrompeu no cenário, e no imaginário, político americano como uma força da natureza. Tão poderosa que, a certa altura, em vez de candidata a vice, parecia disputar a Presidência no lugar de John McCain. Quem já transpôs as fronteiras de Manhattan sabe de onde vem tanta energia primal: Palin é o exato reflexo dos americanos do interior, tementes a Deus e desconfiados de tudo o que vem do diabo, também conhecido nesses meios como "governo". Está certo que não era, definitivamente, um bom momento para os republicanos. E está certo que ela não precisava gastar 150 000 dólares em roupas para a campanha e outros 55 000 com a pessoa que as escolheu, nada menos que uma personal stylist, um troço que podia dar até em exorcismo nos tempos dos modelinhos interioranos como na foto pré-fama – o caranguejo empalhado e a pele de urso foram presentes do pai, professor de ciências aposentado. Administrando bem a tensão erótica entre os óculos de professora e as pernas bem torneadas e artificialmente bronzeadas – ou alguém acha que se toma sol no Alasca? –, a governadora só pensa numa coisa por baixo daquele coque: 2012.

 

Milagre na selva

Rodrigo Arangua/AFP

Durante mais de seis anos, Ingrid Betancourt rezou por um milagre. Quando ele aconteceu, no dia 2 de julho, foi melhor do que poderia esperar em suas mais ardorosas preces. Numa operação inacreditavelmente bem-sucedida de infiltração, o Exército da Colômbia libertou Ingrid e mais catorze seqüestrados que padeciam nas mãos dos narcoguerrilheiros das Farc. Os militares armaram a Operação Xeque-Mate durante meses, passando-se por um grupo amigo que assumiria os reféns por ordens superiores. Ingrid rezou, ao lado da mãe, na pista da base aérea para onde os ex-cativos na selva amazônica foram levados. Daí, voou para a França, onde tem cidadania e aura de heroína. Mulher de família rica, carismática e idealista, que fazia uma campanha presidencial mais simbólica do que efetiva quando teimou em ir para uma área sob controle das Farc, Ingrid manteve a pose e a lucidez em circunstâncias indizíveis. Tentou fugir e passou a ser acorrentada pelo pescoço. Quase morreu de doenças tropicais e depressão. Brigou com sua ex-assessora, Clara Rojas, que teve um filho com um guerrilheiro. Por avanços indevidos, Ingrid esbofeteou um de seus algozes e chutou em parte sensível outro refém. Para as Farc e seus simpatizantes, incluindo Hugo Chávez, a Operação Xeque-Mate representou uma derrota moral acachapante. Para o resto da humanidade, uma milagrosa vitória.

 

Fim de jogo

Maya Alleruzzo/AP

A vida dos iraquianos piorou ou melhorou depois da invasão americana? Do ponto de vista moral, essa é a pergunta que mais conta. A resposta, como tudo que envolve esse assunto, é complexa: a vida piorou, depois melhorou um pouco, piorou de novo e agora está num dos pontos menos ruins. Pode piorar, paradoxalmente, depois que os americanos forem embora – em 2011, pelo presente acordo, ou antes, se Barack Obama mantiver o seu compromisso número 1 de campanha. Qualquer balanço da invasão do Iraque e das tragédias subseqüentes envolve entender o mosaico de contradições externas e rivalidades internas entre correntes religiosas muçulmanas (sunitas e xiitas). Feita sob pretexto falso (a existência de armas químicas e biológicas que ameaçavam os Estados Unidos), a invasão redundou num bem verdadeiro (a queda de Saddam Hussein). Também virou a maré do poder: de subjugados, os xiitas se tornaram subjugantes. A marginalização dos sunitas alimentou a fornalha de violência que consumiu o Iraque depois da invasão. A estabilização atual derivou tanto do aumento do número de militares americanos quanto de um acordo de pacificação com chefes sunitas. A guerra, tal como existiu nos últimos anos, acabou. A folga permitiu até missões de boa vontade como a do capitão Charles Ford, que foi jogar videogame na casa de um menininho de 7 anos, mutilado por uma bomba insurgente, e produziu uma foto de cortar o coração.

 

Sarkô quer ser cacique

Philippe Wojazer/AFP

Todo político acha a mesma coisa de si mesmo – que é o centro do universo –, mas o presidente Nicolas Sarkozy parece mais político do que os outros. No sistema sarkocêntrico, qualquer problema pode ser resolvido desde que os envolvidos se submetam a sessões intensas de convencimento. Se teimarem em não ceder, tudo bem: Sarkozy sai da reunião e diz coisas que não correspondem exatamente aos registros. Angela Merkel, a primeira-ministra alemã, faz um wagneriano esforço para disfarçar a raiva que sente desse hábito do presidente francês. George W. Bush também já foi submetido ao mesmo tratamento – Sarkozy propalou uma imaginária concordância dos Estados Unidos com regulamentos e tratativas sobre a crise financeira mundial. Os exageros de Sarkô são explicados por um desejo devorador de resolver tudo e todas as coisas que o mantém em constante hiperatividade – a ponto de ser raro vê-lo quieto, entre índios igualmente circunspectos, como nesta foto tirada em visita à Guiana Francesa. Seu primeiro ano e meio de governo esteve longe de ser brilhante: ele não empreendeu as reformas prometidas para tirar a França do marasmo e alienou parte do eleitorado mais à direita que havia votado nele com essa missão. À esquerda, fez uma única – e muitos concordariam que incomparavelmente valiosa – conquista: Carla Bruni. Pensando bem, não é de estranhar que o homem se ache o rei do croissant de chocolate.

 

Adeus, Bush

Jonathan Ernst/Reuters

O mundo era outro quando George W. Bush tomou posse, no distante 20 de janeiro de 2001. E como. Os americanos mais ricos aplicavam o dinheiro em instituições sólidas como o Lehman Brothers ou a Merrill Lynch. Seguros eram com a AIG. Os que gastavam mais do que ganhavam estavam descobrindo um jeito genial de produzir dinheiro: bastava refinanciar o imóvel próprio. Se não o tinham, compravam com o crédito fácil. E refinanciavam. As torres gêmeas do World Trade Center eram o cartão-postal da pujança financeira de Nova York e, portanto, o centro do universo. O novo presidente tinha alguns cabelos brancos e duas idéias: cortar impostos para as faixas de alta renda e melhorar a educação. Seria fácil prosseguir infinitamente nas analogias com o filme Adeus, Lenin, em que um filho prestimoso tenta esconder da mãe doente e comunista a derrocada da Alemanha Oriental, recriando velhos ícones. A diferença, claro, é que o mesmo sistema que gerou Bush, a crise e tudo de ruim associado a ambos se reinventou com um certo Barack Obama. E que diferença.

 

Fada madrinha ao contrário

Juan Mabromata/AFP


Era uma vez um reino encantado que começava com planícies férteis como não existem iguais e terminava em deslumbrantes geleiras dos tempos da criação do mundo. Aí... não, seria injustiça dizer que Cristina Kirchner foi a, digamos, fada má que destruiu tudo. A maldição que paira sobre a Argentina precede as malfeitorias da atual presidente e pode ser resumida numa palavra: peronismo. No governo do marido dela, Néstor Kirchner, quando o mundo bombava e quem tinha commodities no silo ganhava salvo-conduto para as maiores barbaridades, deu para disfarçar. Com Cristina, ocorreu o contrário. Os preços descambaram, a irracionalidade começou a dar seus frutos apodrecidos, o conflito com os produtores agrícolas envenenou a fonte vital da riqueza argentina e não houve maquiagem que escondesse a inflação de mais de 20%. Até as aposentadorias privadas foram garfadas. Os que podem voltam, amarguradamente, para o refúgio de sempre: o dólar. Debaixo do colchão.

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