"Os problemas atuais do capitalismo afloraram por causa de um programa ideológico centrado na desregulamentação. Seu objetivo foi remover o juiz de um conjunto de atividades econômicas muito competitivas. Imagine o que aconteceria se o mesmo fosse feito numa liga de futebol em que Brasil e Argentina se enfrentassem semana após semana"
Ceewan Aziz/Reuters |
AS REGRAS DO JOGO As liberdades do capitalistmo dependem da obediência a normas |
A atual crise financeira teve início em agosto de 2007 e foi anunciada por um congelamento dos mercados de crédito nos Estados Unidos e na Europa em um tempo de prosperidade mundial, baixa inflação e expectativa generalizada de que tudo ficaria como estava. No período de quinze meses, a crise espalhou-se dos Estados Unidos, onde estava inicialmente limitada ao mercado de hipotecas imobiliárias, para mercados de todo tipo e para os mais importantes países do mundo. Ela já devastou a indústria americana de investimentos bancários, precipitou a mais severa recessão desde a II Guerra Mundial, e agora parece conduzir à nacionalização parcial das três maiores fabricantes de carros americanas. Ela ocasionou ainda a liberação de trilhões de dólares em créditos e garantias de empréstimos, com o fim de conter a implosão do sistema financeiro americano. O que aconteceu?
Alguns analistas culpam os capitalistas irresponsáveis pela crise, e com alguma razão, considerando os gigantescos pacotes de vantagens recebidos por administradores que levaram empresas americanas a agonizar. Mas acredito que as causas subterrâneas da crise se encontram num conjunto de idéias capengas amplamente divulgadas nos Estados Unidos e na Inglaterra, e que datam, grosso modo, da década de 1980. No seu cerne, os erros estão ligados a uma ideologia que definia o capitalismo, de forma equivocada, como sendo tão-somente a soma de "mercados livres e livre-iniciativa". Nessa visão ideológica, as soluções do mercado são tidas como corretas por definição, graças ao papel coordenador da mão invisível, e a regulamentação governamental desses mercados é desprezada como uma interferência de resultados incertos, quando não absolutamente destrutivos. Se é verdade que a regulamentação pode criar custos adicionais e distorcer os mercados, o fato cabal é que o capitalismo não tem como existir sem ser de alguma forma regulado por uma entidade com poder coercitivo, capaz de punir quem quebra as regras. Essa negligência de um fator essencial – qual seja, o papel da regulamentação – está por trás de grande parte do que deu errado, e do que vai continuar a dar errado até ser corrigido.
DEFININDO CAPITALISMO
Não existe uma definição-padrão de capitalismo, e um bom número de obras influentes sobre o tema nem sequer tenta defini-lo. Entretanto, a maior parte dos homens de negócio de língua inglesa utiliza alguma definição semelhante à do professor Thomas McCraw em seu livro Creating Modern Capitalism (O Surgimento do Capitalismo Mo--derno). McCraw afirma que, "em seus elementos mínimos, uma sociedade capitalista é organizada em torno de uma economia de mercado que enfatiza a propriedade privada, a oportunidade empresarial, a inovação tecnológica, a inviolabilidade dos contratos, o pagamento de salários em dinheiro e a disponibilidade de créditos". Essa definição, como tantas outras, tem seu foco naquilo que os agentes econômicos podem fazer nos limites do mercado. Não diz nada sobre de onde vieram esses limites, ou sobre como eles moldam os custos potenciais e as oportunidades que se apresentam aos agentes econômicos. Tal definição ignora as instituições essenciais do sistema capitalista. Equivale a descrever um evento organizado de um esporte de equipe qualquer (tal como a Copa do Mundo) somente a partir do que acontece dentro do campo, onde os times competem para mostrar sua excelência. Funciona em certa medida, mas os elementos que essa abordagem deixa de fora são cruciais para entender a diferença entre o futebol da Copa do Mundo e o futebol americano ou australiano – e também para entender o que deu errado nos mercados financeiros.
Uma definição mais ampla de um certame organizado levaria em conta as instituições essenciais que apóiam o jogo em campo, incluindo o manual de regras, os juízes que o interpretam e impõem, além dos técnicos, dos administradores dos estádios, e assim por diante. Também reconheceria que as liberdades do capitalismo estão condicionadas à obediência das normas. Por fim, daria conta do papel da autoridade política (por exemplo, a Fifa), que tem o poder de mudar regras, nomear árbitros, aceitar novas equipes na liga ou expulsar um jogador que cometeu uma infração grave.
Os problemas atuais do capitalismo afloraram por causa de um programa ideológico centrado na desregulamentação. Seu objetivo foi remover o juiz e eliminar muitas regras de um conjunto de atividades econômicas muito competitivas. Imagine o que aconteceria se o mesmo fosse feito em uma liga de futebol em que Brasil e Argentina se enfrentassem semana após semana. O mantra da desregulamentação indica um entendimento equivocado do capitalismo como ciência impessoal, e não como um sistema de governança baseado na atividade humana.
PERCEPÇÃO ERRADA DO CAPITALISMO
Nos Estados Unidos, essa concepção equívoca deita raízes profundas no sistema legal da era pós-Guerra Civil, a partir da segunda metade do século XIX. A Suprema Corte julgou inconstitucionais apenas dois atos do Congresso entre 1790 e 1860, mas derrubou 58 entre 1860 e 1930, e sete de onze disposições legislativas importantes do New Deal, entre 1933 e 1936. Na maioria desses casos, a corte defendeu sua opinião argumentando que a Constituição proíbe ao governo federal interferir em contratos privados e assim promove o "capitalismo laissez-faire". Isso acabou em 1937, quando o presidente Roosevelt criou uma crise constitucional ao propor a entrada de vários novos magistrados na Suprema Corte, com o intuito de dissolver o poder de cinco juízes conservadores que, ao barrar reformas econômicas propostas por via legislativa, acabavam efetivamente escrevendo a lei eles mesmos. Roosevelt e seus partidários argumentaram, com justeza, que a Constituição não impunha o laissez-faire ou qualquer outra modalidade de capitalismo. E de 1937 a 1981 os Estados Unidos experimentaram uma forma de capitalismo muito próxima ao da Europa de hoje, caracterizado pela regulamentação governamental das atividades do mercado.
Milton Friedman foi o grande mentor intelectual da ressurreição do capitalismo laissez-faire, com seu famoso livro Capitalismo e Liberdade. Na sua exposição, as operações de mercado representam transações bilaterais e voluntárias que são auto-regulatórias e, portanto, representam automaticamente o melhor para a sociedade, como no modelo de Adam Smith. Com a presunção de que os mercados regulam a si mesmos, a desnormatização se converteria em prioridade, como de fato ocorreu nos Estados Unidos de 1980 em diante.
Os proponentes da desregulamentação não conseguiam reconhecer os problemas dessa política, mesmo quando confrontados com dados que demonstravam os profundos desequilíbrios que se acumulavam na economia americana. Eles estavam certos de que os resultados do mercado eram o melhor para a sociedade. Mas havia vários sinais de imensos desequilíbrios na economia americana. A alavancagem financeira no sistema mais do que dobrou em relação ao PIB, e esse crescimento não se deve em nada a empréstimos tomados pelo governo. As dívidas dos consumidores dobraram em relação aos rendimentos. A poupança familiar caiu de 8% ou 10% do PIB para zero. E os déficits em conta-corrente chegam regularmente a 600 bilhões de dólares por ano. Os Estados Unidos podiam tomar empréstimos porque controlavam a moeda das reservas cambiais.
O novo sistema financeiro criou o aumento desregrado de hipotecas de alto risco graças a instituições novas e em grande parte livres de regulamentação. Se um devedor sem fiança conseguisse fechar negócio com uma instituição de crédito disposta a arcar com o risco, os reguladores faziam vista grossa. Os mercados se regulariam por si mesmos. E os mercados estavam, assim, em equilíbrio – mesmo que fosse um equilíbrio falso. A crise financeira tem suas raízes nos Estados Unidos e em empréstimos irresponsáveis feitos sob a supervisão de um Fed (o equivalente americano de um banco central) que teria o poder de parar a farra. Não o fez porque seu presidente acreditava que a regulamentação privada seria sempre superior à pública.
O capitalismo não pode ser culpado pelo que aconteceu. A culpa deve ser atribuída aos ideólogos que o entenderam mal, acreditando que o equilíbrio do mercado equivale ao interesse público, por definição. Na verdade, ele equivale ao interesse de banqueiros e especuladores que, nas palavras de Martin Wolf, colunista do Financial Times, conseguiram "privatizar os lucros e socializar os prejuízos" – e com isso ajudaram a desacreditar o capitalismo no mundo todo.