Entrevista:O Estado inteligente

domingo, dezembro 21, 2008

Míriam Leitão Lições do tempo

O Estado de S Paulo

O ano teve muitos aniversários redondos, mas os 40 anos do AI-5 foram os mais marcantes. Os jornais trouxeram tudo de volta, até o som da reunião no Palácio Laranjeiras, com as sirenes ao fundo e os erros na mesa, confirmando que ainda há muito a aprender sobre a História recente. Até porque o tempo passa rapidamente: 95 milhões de brasileiros nasceram depois do fim do AI-5.

"O Globo" lembrou, com as reportagens sobre o AI-5, o papel dos "colaboracionistas", civis que compactuaram e chegaram ao poder na ditadura. Muitos têm poder ainda hoje. Foi bom lembrar que o regime militar teve a colaboração de civis, como a ocupação nazista na França teve a do general Pétain.

O som daquela reunião ensina. O vice-presidente Pedro Aleixo fez um forte voto, lembrando o ponto central: aquele Ato Institucional não defenderia a Constituição. Iria suprimi-la. A ambigüidade de Aleixo aparece em alguns momentos, mas não é fácil dizer, naquele contexto, o que ele disse, nem votar de forma tão solitária, preservando a lucidez no mar de engano. No fim da reunião, Costa e Silva teve um momento de dúvida: "Peço a Deus que não me venha amanhã convencer de que ele (Aleixo) é que estava certo." Ele estava. Naquela reunião, Aleixo perdeu a presidência.

Magalhães Pinto poderia ter se salvado para a História. Admitiu que estava constrangido, lembrou que aquele texto iria "tirar de cada um o direito de divergir", mas deixou claro que o aceitava.

A reunião revela o quanto do deputado Márcio Moreira Alves, cujo discurso entrou para a História como pretexto, realmente irritou o governo. Revela-se, assim, a estupidez que aprisiona os ditadores. Um discurso não derrubaria a ordem vigente.

Naquela mesa, mais do que as convicções pessoais, o caráter de cada um se revelou, e apareceu um velho defeito do Brasil. Nunca tantos falaram em democracia para remover seus últimos vestígios; nunca tantos falaram em Constituição para enterrar até mesmo a ordem constitucional imposta pelo Executivo, meses antes. Lembra outros momentos na História, em que nossos personagens fizeram uma coisa, sustentando fazer o oposto. A brutal e longa escravidão ainda é definida como "suave"; no debate da época, certos defensores da escravidão diziam que o seu fim desampararia os escravos. O defeito da dissimulação é velho no Brasil.

Alguns foram explícitos, como Jarbas Passarinho, com o seu famoso, hoje título de peça de teatro, "Às favas com os escrúpulos". A transcrição suavizada mostra que vem de longe a tendência de se retirar o excesso dos discursos. Explícito, também, o ex-ministro Delfim Netto, que achou que o AI-5 "não era suficiente"; queria mais. O áudio desmonta a boa imagem de modernizador construída depois por Hélio Beltrão. Na reunião, ele lembrou suas origens democráticas, mas as renegou, ponderando apenas que aquele poder não poderia ser usado contra "inocentes". Ora, não existe arbítrio seletivo. A História está se escrevendo ainda; o trabalho feito pelos jornais ajudou na recuperação. Nossa memória já nos trai em alguns pontos importantes, que precisam ser revisitados.

Este foi um ano curioso, não apenas pelos múltiplos aniversários redondos, mas porque o passado voltou numa fratura exposta dentro do governo sobre acusar ou defender torturadores. A proposta do advogado-geral da União, José Antônio Toffoli, de que o Estado deve defendê-los, com o dinheiro dos nossos impostos, é uma idéia enlouquecida. Só um surto de supressão da razão justifica essa proposta. Ainda bem que ela teve opositores dentro do próprio governo.

A festa de fim de ano do "Bom Dia Brasil", da TV Globo, foi numa churrascaria da Zona Sul. Saí mais cedo, para ir para a redação do jornal, e entrei numa grande fila de táxi. Olhei para algumas pessoas na fila e achei que pareciam militares aposentados. Eram. "Olha quem está aqui!", disse um deles para a mulher "É a Míriam Leitão. Ela não gosta de nós. Somos militares", apresentou-se. Outros se viraram, formando uma roda.

"Não sou contra militares em si. Fiz recentemente palestras na E..."

"Soube. Você já falou para novas turmas da Eceme (Escola de Comando do Estado Maior do Exército). Olha, houve tortura, não vou dizer que não houve. Mas eu nunca torturei, você acredita em mim?" Outro, que estava bem na frente, veio atraído pela conversa. "Ah, é você! Você não gosta da revolução."

"Na verdade, general, nem a chamo de 'revolução'."

"Mas era preciso, aquilo que fizemos era preciso para evitar que o Brasil fosse para um mau caminho."

"Bom, penso que aquilo é que foi o mau caminho."

Dentro dos quartéis ainda se ensina que eles estiveram certos, a seu tempo. O Brasil escolheu distribuir indenizações, algumas tão gordas quanto injustas, mas nunca resgatou todos os documentos pelos quais se conta como foi a História; os militares nunca admitiram o erro. As novas tropas são formadas na idéia de que houve uma "revolução" benéfica feita por eles. Com tal ambigüidade, ficamos naquele ponto definido por William Faulkner: "O passado não está morto e enterrado; na verdade, ele nem é passado." Avisei aos meus amigos da fila que sobre o passado nós divergíamos irremediavelmente, mas que sobre o futuro concordaríamos. Desejei Feliz Ano-Novo aos generais e entrei no táxi.

Com Leonardo Zanelli

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