Na visita de Lula a Havana, onze meses atrás, teceu-se a operação diplomática que culminou na Cúpula da América Latina e do Caribe (CALC), no Sauípe, semana passada. O acerto bilateral entre Brasil e Cuba passou menos pelo Itamaraty do que pelos canais diretos de Lula e do PT com os Castro. Os dois lados compartilhavam o interesse de promover uma iniciativa latino-americana que excluísse Hugo Chávez do centro do palco. O presidente brasileiro almejava recuperar a auréola perdida de liderança regional. Os cubanos pretendiam desvencilhar-se do caixote estreito da Alternativa Boliviariana para as Américas, o grupo geopolítico controlado pela Venezuela, que lhes serviu no cenário imposto pelo governo Bush, mas torna-se quase imprestável com o advento do governo Obama.
“Mesmo que nada tivesse acontecido aqui, essa reunião valeu a pena só pelo fato de o Grupo do Rio ter aprovado a volta de Cuba.” Lula é muito claro, quando quer. Essencialmente, nada aconteceu na CALC exceto isto: ao incorporar Cuba, o Grupo do Rio se extinguiu como mecanismo de consulta de países democráticos da América Latina e construiu um novo degrau na escada que conduz ao cancelamento da OEA. O degrau prévio foi a criação do Conselho Sul-Americano de Defesa, também patrocinado pelo Brasil.
A OEA que se tenta cancelar não é mais o instrumento de hegemonia hemisférica dos EUA de outros tempos.
Oriunda da época áurea do panamericanismo, a organização de segurança regional se completou com o Tratado Interamericano de Assistên-cia Recíproca, que servia ao propósito de subordinar as Forças Armadas das Américas ao comando de Washington. O duplo aparato da Guerra Fria entrou em crise com a Guerra das Malvinas, em 1982, quando os EUA respaldaram a Grã-Bretanha, seu aliado na Otan, enquanto os países latino-americanos declararam apoio à reivindicação argentina. Mas a OEA se reinventou no pós-Guerra Fria, adotando em 2001 uma Carta Democrática, que foi invocada para deter o golpe de Estado contra Hugo Chávez, no ano seguinte. No Sauípe, sob o cobertor puído da retórica antiamericana, ergueu-se uma frente de rechaço aos compromissos costurados na hora da reconstrução da OEA.
O regime cubano contou com a sorte de atravessar a fase inicial da transição de poder provocada pela doença de Fidel Castro na conjuntura de repúdio internacional às políticas de Bush. A eleição de Obama modifica a disposição das peças no tabuleiro, colocando o problema do ingresso de Cuba no sistema das Américas. A solução democrática do impasse exigiria a libertação incondicional dos presos políticos em Cuba, o levantamento igualmente incondicional do bloqueio econômico americano e uma negociação com vistas à instauração dos direitos humanos básicos na ilha. Mas Raúl Castro explora uma hipótese diferente: a incorporação de Cuba a instituições latinoamericanas, circundando a OEA, e uma barganha paralela com Washington de troca dos presos políticos por espiões cubanos que cumprem pena nos EUA. No Sauípe, contando com os bons ofícios do Brasil, o ditador cubano avançou nesse rumo estratégico.
A proposta de intercâmbio de presos políticos por espiões não contribui para o encerramento do bloqueio americano. Mas o governo cubano não apenas não deseja esse desenlace como o teme. O bloqueio é peça insubstituível na legitimação da ditadura e na criminalização da opinião independente. Ele pune os cubanos comuns, mas não a burocracia comunista, e nutre o mito da resistência da ilha à maior potência do mundo.
“Estamos dispostos a falar com o senhor Obama, mas em absoluta igualdade de condições.” Na ling u a g e m d e C a s t r o , “igualdade” significa equalizar o estatuto dos presos de consciência, que são cidadãos cubanos encarcerados por criticar a ditadura, com o de cinco comprovados espiões, condenados em 2001 e elevados à condição de heróis nacionais pela máquina de propaganda do regime.
A proposta escancara uma concepção de mundo: para Havana, um gesto de divergência política converte o dissidente em agente estrangeiro, “espião” a soldo dos EUA.
Nos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, Lula não levantou a voz para protestar contra essa interpretação indecente da “igualdade”.
A ditadura cubana é um ícone da maior parte da esquerda latino-americana, pois conserva o sistema de partido único que figura como seu ideal adorado, mesmo se hoje imposque as mudanças alcançadas pelas decisões de João XXIII decorreram também da complementaridade entre a sua visão de abertura e inclusão e o trabalho sofisticado e hábil de seu companheiro e sucessor.
É interessante pensar como o Rio pode aproveitar a comemoração da eleição de João XXIII para ponderar sobre o poder da generosidade, da serena formulação de opções, e da perseverança para realizá-las. Com essa cabeça, provavelmente dá para enfrentar melhor os desafios e oportunidades do Estado nesse ano que começará com muitas interrogações, mas também com a divisa de que, sim, nós podemos.
JOAQUIM LEVY é secretário da Fazenda do Estado do Rio.
O GLOBO NA INTERNET OPINIÃO Leia mais artigos oglobo.com.br/opiniao JOAQUIM LEVY Há uma boa notícia para o começo de 2009. No dia 25 de janeiro, poderá se comemorar 50 anos da eleição de João XXIII. Como se sabe, o cardeal Roncalli foi o homem que mudou a Igreja Católica no século XX.
Ele foi um alívio a feridas de um mundo que havia saído de uma guerra apocalíptica, em relação à qual a Igreja Católica havia tido uma reação marginal e mesmo ambígua. A esse mundo ainda dolorido, João XXIII ofereceu a doçura da sua pessoa e da sua mensagem.
João XXIII foi principalmente o precursor do mundo atual. Um mundo idealmente aberto, em que não se tem medo da evolução tecnológica, de democracia, do multiculturalismo.
Onde o maior valor é encontrar um sentido para se lidar com as oportunidades de um planeta cada vez menor e um conhecimento cada vez maior, sem a vertigem da vontade do poder ou de algumas alternativas que pontuaram os últimos cem anos.
Vale a pena lembrar dele, porque o impacto do seu pontificado vai muito além dos limites da Igreja Católica.
Uma das suas primeiras ações foi afirmar a liberdade religiosa, sem prejuízo da fé — o que pode parecer natural e óbvio, mas é uma contribuição extraordinária para um mundo que ainda procura um equilíbrio nessa área. Entre os muitos corolários dessa posição, destaca-se o fim do cisma do cristianismo e da discriminação chancelada aos judeus.
João XXIII talvez não venha sendo muito lembrado nos últimos anos.
Ainda recentemente, um grande show de uma cantora internacional mostrou inúmeros ícones recentes da liberdade e da aproximação dos povos — de Gandhi a Martin Luther King, Desmond Tutu e o Dalai Lama.
Mas a imagem de João XXIII foi omitida.
Não interessa especular por que essa omissão específica, mas ela nos remete ao fato de que, talvez pelo teor imediato das suas ações, a imagem de João XXIII não se preste tanto ao pop. Afinal, foi como chefe de uma organização concreta que ele quebrou a hierarquia existente e aproximou os descalços.
Para alguns, talvez haja um otimismo injustificado na mensagem de cinqüenta anos atrás. Afinal, as guerras e injustiças continuam. A pobreza não foi eliminada e muitos continuam sem voz, apesar da melhora do padrão de vida da maior parte da humanidade.
Ao contrário, enfrentamos agora o espectro da queda do crescimento econômico, em meio a tensões e ataques terroristas. Mas a persistência desses problemas apenas reforça o valor daquela chama.
Assim como recomenda reconhecer Papai Noel sível. Raúl Castro precisa equiparar os dissidentes a espiões para preservar um elemento crucial da lógica do regime: o privilégio de usar como reféns os que ousam discordar, prendendoos ou soltando-os segundo as conveniências cambiantes de política interna e externa. Vergonhosamente, o Brasil de Lula se tornou o principal sustentáculo diplomático de um governo que trata cidadãos como reféns.
Rio Branco fundou a moderna política externa brasileira estabelecendo uma parceria estratégica com os EUA. A sua meta não era alinhar o Brasil à grande potência, mas evitar que o país ficasse preso à teia de um embrionário antiamericanismo latinoamericano. O governo Lula anunciou, na sua inauguração, uma ruptura de fundo com a tradição central da política externa nacional, mas, para além da retórica oca, não tocou nos fundamentos da orientação de Rio Branco. O Conselho Sul-Americano de Defesa e a CALC assinalam uma reviravolta. A pretexto de organizar um contraponto à liderança destrutiva de Chávez, o Brasil formula uma versão atenuada da anacrônica política chavista de unidade latino-americana contra os EUA. Voluntariamente, mas sem uma percepção nítida de seu próprio norte, nossa diplomacia para as Américas coloca-se na posição de refém do Mussolini de Caracas.
Que se note: o Brasil realiza esse movimento às vésperas da posse de Obama e quando o chavismo entra em inexorável declínio. É o preço que pagamos pelos laços especiais que ligam Lula e o PT ao castrismo.
No Sauípe, ergueu-se uma frente de rechaço aos compromissos da OEA.
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