O Estado de S. Paulo |
3/9/2008 |
É natural que o extinto Serviço Nacional de Informações (SNI) tenha uma imagem negativa a ponto de o próprio criador, o general Golbery do Couto e Silva, haver dado a seu respeito um veredicto duro e definitivo: “Eu gerei um monstro.” Por mais necessário que seja, nenhum serviço de inteligência goza de boa reputação no mundo todo. Nos relatos escritos sobre a Agência Central de Inteligência, a CIA americana, por exemplo, nada é destacado de positivo para ser citado: só vêm à tona exemplos de trapalhadas e de erros grotescos, como a malograda invasão da Baía dos Porcos, em Cuba, na gestão Kennedy. No caso da agência brasileira, a má imagem é piorada pela péssima catadura: seus préstimos foram utilizados para monitorar movimentos e ações dos órgãos da repressão da ditadura militar contra a resistência dos grupos da esquerda armada. O SNI sujou as mãos com o sangue dos mártires do socialismo e dos sobreviventes da guerra suja, atualmente no poder. A extinção do serviço foi mais uma bravata do primeiro presidente eleito pelo voto popular após Jânio Quadros, Fernando Collor de Mello, que não deve propriamente ser definido como um estadista. E, por isso, não teve tirocínio para, depois de jogar o entulho autoritário no lixão, criar um sucedâneo para não deixar a Presidência da República a pé em informação estratégica. A Agência Brasileira de Inteligência (Abin), criada para suprir essa lacuna, nunca conseguiu cumprir tal papel e tem funcionado apenas como um ninho de “arapongas”, ave brasileira de canto estridente a que a gíria recorreu para definir os agentes secretos nacionais. Este, na certa, não é um elogio à sua discrição, condição sine qua non para a eficiência no ofício deles. A generalizada quebra de sigilo telefônico, vinda à tona com a tal Operação Satiagraha da Polícia Federal, denuncia a existência entre nós de uma República de comadres fofoqueiras, com graves conseqüências para a vida de alguns cidadãos. E, sobretudo, com riscos para o bom funcionamento do Estado Democrático de Direito. A mera invocação do SNI, morto e enterrado no século passado, já é por si só uma demonstração da incapacidade crônica das autoridades encarregadas de gerir a coisa pública e de sua vocação para a chanchada. A admissão pelo delegado Protógenes Queiroz de ter recorrido de maneira irregular aos serviços da Abin, quando se sentiu desamparado pela própria chefia hierárquica na Polícia Federal, já havia sido motivo mais que suficiente para que os Poderes republicanos investigassem e punissem essa irregularidade. A posterior divulgação nos meios de comunicação de conversas telefônicas (aliás, em nada comprometedoras) de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) com parlamentares deveria ter motivado a adoção de medidas muito rigorosas pela instância maior do Poder Executivo. Trata-se de uma descoberta grave demais para ser abafada com os panos quentes de sempre dos inquéritos para esclarecimentos e outras bobagens da “burocretinice”. O pedido de providências do presidente do STF, Gilmar Mendes, e de seus colegas Carlos Ayres Britto e Cezar Peluso ao presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e os protestos públicos do presidente do Congresso, senador Garibaldi Alves (PMDB-RN), são inegáveis evidências da impotência do Legislativo e do Judiciário neste assunto de interesse capital para a ordem republicana. E, ainda que se admita não lhes restar alternativa a isso, a explicação dada pelo ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Jorge Armando Félix, superior hierárquico dos responsáveis pela desrespeitosa escuta - de que os grampos não foram feitos por ordem da direção da Abin -, é um insulto à inteligência das vítimas e à autoridade de seus chefes. Só faltou o general dizer que não há ordem escrita para tal ignomínia. Pressionado pelo STF e pelo Senado, o presidente fez o que devia: afastou a diretoria da Abin - à frente dela o diretor-geral Paulo Lacerda - até o fim das investigações, a serem feitas pela Procuradoria-Geral da República e pela Polícia Federal (PF). Não se deve esperar rapidez na conclusão da devassa anunciada: como lembrou este jornal na edição de ontem, a PF, orgulho do governo pela forma espalhafatosa como algema acusados da prática de crimes do colarinho-branco, não é tão eficiente (nem ágil) quando convocada a investigar os diletos do rei. Arrasta-se há quatro anos e meio o inquérito sobre Waldomiro Diniz, assessor para contatos com parlamentares à época em que José Dirceu reinava na Casa Civil e réu confesso filmado achacando um empresário da jogatina. O dossiê Vedoin e o vazamento de dados do cartão corporativo no governo Fernando Henrique também ainda não foram esclarecidos. De qualquer forma, o presidente evitou uma crise institucional. Mas seu engenho de comunicador, conciliador e articulador político e os efeitos benéficos de seu senso comum na condução da política econômica ainda não se manifestaram para torná-lo propriamente um estadista. Isso ocorrerá se ele for além da coragem de mexer no vespeiro da comunidade de informações e transformar o ninho de comadres fofoqueiras que desprezam o primado do direito da cidadania ao sigilo telefônico no órgão eficiente de inteligência que todo Estado de Direito deve ter. Para fazê-lo não lhe bastarão popularidade e instinto que lhe sobram: precisará mostrar um tirocínio que nunca provou ter. Só que Lula não é o único chefe de Poder de quem a Nação exigirá ação efetiva no combate à República da futrica em que o Brasil se transformou com a disseminação desta farra dos grampos. Do presidente do Congresso se exige a liderança de um trabalho que produza uma lei capaz de coibir tais abusos. E do chefe do Judiciário, medidas para cobrar dos juízes mais rigor no critério para autorizarem a polícia a xeretar telefones. |
Entrevista:O Estado inteligente
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quarta-feira, setembro 03, 2008
A farra dos grampos na República da fofoca José Nêumanne
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