"A escritora Doris Lessing diz que,
quando se corrompe a linguagem, logo
se corrompe o pensamento"
Quando começam a ser ouvidas quase todo dia palavras que ninguém ouvia antes, é bom prestar atenção – estão criando confusão na língua portuguesa e raramente isso resulta em alguma coisa boa. No mundo dos três poderes e da política em geral, por exemplo, fala-se cada vez mais um idioma que tem cada vez menos semelhança com a linguagem de utilização corrente pelo público. As preferências, aí, variam de acordo com quem está falando. A ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, colocou no mapa a palavra "escandalização", à qual acrescentou um "do nada", para descrever o noticiário sobre o dossiê (ou banco de dados, como ela prefere) feito na Casa Civil com informações incômodas para o governo anterior. Mais recentemente, o ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal, contribuiu com o seu "espetacularização"; foi a palavra, vinda de uma língua desconhecida, que selecionou para manifestar seu desagrado quanto à colocação de algemas no banqueiro Daniel Dantas, durante as operações da Polícia Federal que lhe valeram o desconforto de algumas horas na prisão. "Obstaculização", "fulanização" ou "desconstitucionalização" são outras das preferidas do momento – sendo certo que existe, por algum motivo, uma atração especial por palavras que acabam em "zação".
O ministro Tarso Genro, da Justiça, parece ser o praticante mais entusiasmado desse tipo de linguagem entre as autoridades do governo. Poucas coisas, hoje em dia, são tão difíceis quanto pegar o ministro Genro falando naquilo que antigamente se chamava "português claro". Ele já falou em "referência fundante", "foco territorial etário", "escuta social orgânica articulada", entre outras coisas igualmente alarmantes; na semana passada, a propósito da influência do crime organizado nas eleições municipais do Rio de Janeiro, observou que "a insegurança já transgrediu para a questão eleitoral". É curioso, uma vez que, como alto dirigente do Partido dos Trabalhadores, deveria se expressar com palavras que a média dos trabalhadores brasileiros conseguisse entender. Que trabalhador, por exemplo, saberia o que quer dizer "referência fundante"? Mas também o PT, e não só o ministro Genro, gosta de falar enrolado. Seus líderes vivem se referindo a "políticas", que em geral são "estruturantes"; dizem que isso ou aquilo é "pontual", e assim por diante. "Políticas", no entendimento comum da população, são mulheres que se dedicam à política; a senadora Ideli Salvatti ou a ex-prefeita Marta Suplicy, por exemplo, são políticas. "Pontual", da mesma forma, é o cidadão que chega na hora certa aos seus compromissos. Fazer o quê? As pessoas acham que esse palavreado as torna mais inteligentes, ou mais profissionais. Conseguem, apenas, tornar-se confusas, ou simplesmente bobas.
As coisas até que não estariam de todo mal se só os habitantes do mundo oficial falassem nesse patoá. Mas a história envolve muito mais gente boa, e muito mais do que apenas falar complicado – o que ela mostra, na verdade, é que o português está sendo tratado a pedradas no Brasil. O problema começa com a leitura. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por exemplo, vive se orgulhando de não ler livros – algo que considera, além de chato, como um certificado de garantia de suas origens populares. Lula ficaria surpreso se soubesse quanta gente na elite brasileira também não lê livro nenhum – ou então lê pouco, lê livros ruins ou não entende o que lê. Muitos brasileiros ricos, como empresários, altos executivos e profissionais de sucesso, têm, sabidamente, problemas sérios na hora de escrever uma frase com mais de vinte palavras. Escrevem errado, escrevem mal ou não dá para entender o que escrevem – ou, mais simplesmente, não escrevem nada. No mesmo caminho vão professores, do primário à universidade, artistas, profissionais liberais, cientistas, escritores, jornalistas – que já foram definidos, por sinal, como indivíduos que desinformam, deseducam e ofendem o vernáculo.
O mau uso do português resulta em diversos problemas de ordem prática, o primeiro dos quais é entender o que se diz e o que se escreve. Não é raro, por exemplo, advogados assinarem petições nas quais não conseguem explicar direito o que, afinal, seus clientes estão querendo – ou juízes darem sentenças em português tão ruim que não se sabe ao certo o que decidiram. Há leis, decretos, portarias e outros documentos públicos incompreensíveis à primeira leitura, ou mesmo à segunda, à terceira e a quantas mais vierem. Não se sabe, muitas vezes, que linguagem foi utilizada na redação de um contrato. Os balanços das sociedades anônimas, publicados uma vez por ano, permanecem impenetráveis.
Há mais, nisso tudo, do que dificuldades de compreensão. A escritora Doris Lessing, prêmio Nobel de Literatura de 2007, diz que, quando se corrompe a linguagem, se corrompe, logo em seguida, o pensamento. É o risco que se corre com o português praticado atualmente no Brasil de terno, gravata e diploma universitário.