Dê todos os descontos que quiser dar. Diga que a convenção democrata foi uma festa, um show musical, pirotécnico; diga que todos recitaram um roteiro escrito, que foi um jogo de cartas marcadas.
Ainda assim, ficará a exibição de uma vigorosa força partidária. A maior crítica aos partidos americanos é a de que eles bloqueiam os outsiders, os que vêm de fora. Barack Obama venceu também essa barreira.
O feio sentimento da inveja se aproximou de mim em alguns momentos desta convenção. Quis dois ou três partidos assim para chamar de meus. Um desses momentos: a repórter da CNN perguntou a um delegado por que ele tinha, no peito, a medalha da convenção de 1960, a qual escolheu John Kennedy. O rapaz contou que seu avô, que morreu antes de ele nascer, tinha sido delegado: — Ontem, antes de eu vir para cá, minha avó me deu de presente.
Obama, há oito anos, sequer pôde entrar na convenção.
Tinha perdido a eleição, estava endividado, seu cartão de crédito foi rejeitado no estacionamento, e ele não tinha ingresso.
“Oito anos depois, ele é a convenção”, escreveu a revista “Economist”.
O sonho de superar obstáculos é, sem dúvida, inspirador.
“Se você trabalhar duro, você vence”, disse Michelle Obama, entre outros. É um bom recado, mas levado a extremos, culpa-se o excluído pela exclusão: é como se ele ou ela não tivesse trabalhado duro. A vantagem é que o Partido Democrata acredita em políticas ativas de inclusão.
Até ali: 24% dos delegados eram afro-americanos, uma representação que é o dobro de sua participação na população. Que partido brasileiro poderia mostrar uma estatística assim? Os próximos 65 dias serão eletrizantes. Ontem, John McCain deu um golpe de mestre ao escolher uma mulher jovem que venceu a política tradicional. Tenta atrair os democratas descontentes com a escolha de Joe Biden.
Ninguém se arrisca, no empate técnico das pesquisas, a garantir quem vai ganhar.
Barack Obama, se ganhar, inevitavelmente vai decepcionar muitos dos seus apaixonados.
É matemático. Não se pode agradar a tanta gente com expectativa diferente.
Mas a idéia dos democratas de explorar o “sonho americano” tem base.
Obama nasceu antes da lei federal que, em 1965, instituiu o voto dos negros. O direito era garantido em vários estados, e negado em outros. É espantosa a caminhada dos negros a partir daquele ponto. Obama não é exemplo único. Há uma forte elite negra na representação política do país. Ele venceu a rejeição imediata que seu nome provocaria no pós 11 de Setembro. No meio dos dois estranhos nomes, ele ainda tem um “Hussein”.
Venceu o antiislamismo atiçado pelas informações de que eram muçulmanos seu pai e seu padrasto. Por fim, venceu a poderosa máquina dos Clinton.
Hillary disputou como se fosse já dona da candidatura; como se os compromissos com os superdelegados fossem suficientes. Foi atropelada por uma estratégia inteligente.
A derrota de Hillary mostrou que os filtros do sistema político americano deixaram passar um desafiante que chegou pelas bordas. Obama é a chance de envolver os muito jovens na política num país onde o voto não é obrigatório.
Ele tem outras barreiras a vencer. Uma delas é a crítica de que é jovem demais e inexperiente. Nesse ponto, Bill Clinton deu uma grande ajuda no seu discurso. “Em 1992, fui acusado de ser jovem e inexperiente. Isso soa familiar?” Clinton falou isso depois que ele e outros lembraram que seu governo tirou o país da recessão, iniciou um ciclo de forte crescimento, oferta de empregos, aumento da renda, e entregou o país com equilíbrio orçamentário.
Obama terá que vencer a idéia de que não será um bom “comandante-em-chefe”, comparado a um veterano do Vietnã. Ele preparou o golpe contra a idéia de que os falcões republicanos são os donos da defesa. Lembrou que os que morrem nas guerras são democratas e republicanos, e que é do partido de Roosevelt e Kennedy: — Não digam que os democratas não defenderam o país.
Seu discurso, noves fora as paixões que acende, teve estratégia. No início das primárias, Obama mostrava-se como uma ponte na divisão bipartidária americana. Na convenção, foi o homem de partido que ataca o adversário em pontos certos, que mostra as virtudes de um lado contra o outro.
A grande crítica racional ao candidato é que ele é muito pouco específico em suas posições. Cria boas idéias, mas não as define. Os próximos dois meses e pouco serão tempos de definição. Se Obama vencer a maior das disputas, a eleição em si, entrará no governo com vantagens, como o possível controle nas duas casas do Congresso.
Na maioria das cadeiras em disputa, os democratas estão na frente por circunstâncias locais. Terá também a força da economia se recuperando. Assumirá com o país em recessão, porém, ao longo dos trimestres, a economia começará a sair da crise. A mesma onda na qual Bill Clinton surfou.
Fale mal do “sonho americano” e diga que ele é uma criação de marketing político.
Mostre todos os defeitos da democracia deles.
Sei vários. Mas é difícil não admitir: este é um momento emocionante.
Entrevista:O Estado inteligente
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