Carlos Marchi
Durante todo o primeiro mandato e parte do segundo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva teve uma linha direta de consultas com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, mantida por meio de conversas secretas dos então ministros Antonio Palocci, da Fazenda, e Márcio Thomaz Bastos, da Justiça. A linha direta funcionou com mais vigor no auge do escândalo do mensalão, quando os ministros pediram a Fernando Henrique para agir e evitar que a oposição descambasse para pedir o impeachment de Lula. Ele atendeu e se posicionou publicamente contra o impeachment.
Os encontros foram confirmados ao Estado pelo ex-presidente, Palocci e Bastos. Palocci confirmou que esteve pessoalmente com Fernando Henrique “pelo menos cinco vezes”; Bastos disse ter conversado com ele pessoalmente apenas uma vez, em junho de 2005, momento em que crescia a onda do impeachment. Mas os contatos por telefone foram bem mais freqüentes, confirmam os três. Palocci e Bastos asseguram que Lula sempre soube das conversas antes de elas ocorrerem e foi informado do seu resultado depois.
Mais de uma vez, no entanto, em momentos de difícil enfrentamento com a oposição, Lula sugeriu a Palocci: “Vai conversar com Fernando Henrique.” E pelo menos uma vez, em dezembro de 2007, o presidente determinou expressamente que Palocci - então já fora do governo - procurasse o tucano para negociar o projeto de reforma política que pretendia enviar ao Congresso no começo de 2008. Palocci marcou a conversa, mas antes que ela acontecesse Lula desistiu de promover a reforma política.
Ao Estado, Fernando Henrique elogiou Palocci e Bastos, confirmou as conversas e disse que elas foram possíveis porque os dois ex-ministros de Lula têm “noção institucional”. Estendeu o elogio ao chefe de gabinete Gilberto Carvalho: “Esse também tem noção institucional.” Lamentou que a linha de consulta tenha sido interrompida em 2008. No começo, não foi difícil a Palocci procurar o ex-presidente: além de manter excelentes relações com a oposição desde quando era ministro, ele tem a simpatia de Fernando Henrique desde que, prefeito de Ribeirão Preto, inaugurou uma estátua dele na cidade. “Não foi fácil para ele”, reconhece o ex-presidente. Do gesto, brotou afeto.
A conversa com Bastos ocorreu no dia 26 de junho de 2005, no apartamento do ex-presidente, em Higienópolis, e durou das 21 horas à 1 hora da madrugada. Não faltava intimidade pregressa aos dois: antes de serem amigos, eles conviveram em função da amizade dos seus pais. Bastos contou a Fernando Henrique os receios que Lula alimentava e perguntou sobre o espírito então reinante na oposição. A expressão exata que usou foi: “Precisamos baixar essa bola.”
Argumentou que ninguém podia apostar no pior, porque o País ficaria ingovernável. O ex-presidente concordou, deu um conselho e fez uma promessa. O conselho foi que Lula cuidasse de segurar os números da economia e impedisse que se evidenciassem sinais externos de desgoverno; a promessa foi que não jogaria lenha na fogueira e tentaria acalmar seus pares. Nas semanas seguintes, a sua influência foi sentida e acabou sendo vital para que a oposição refreasse o ímpeto e não chegasse ao limite do pedido de impeachment.
Três anos depois, olhando para trás e avaliando a situação, o ex-presidente minimizou o fato de ter atendido aos apelos. “Eu não fiquei contra o impeachment porque eles me pediram, mas porque sou muito cauteloso nessas questões. Na época, não havia condições políticas para sustentar um pedido de impeachment de Lula. Criaria uma cisão no Brasil”, alinhou. Explicou por que aceitou as conversas secretas: “Adversários políticos não devem ser tratados como inimigos.”
MERGULHO NO ESCURO
Tudo azedou repentinamente quando, em 8 de julho de 2005, em meio a um evento no Palácio do Planalto, Bastos foi informado de que um assessor do deputado José Nobre Guimarães (irmão do então presidente do PT, José Genoino) fora preso em São Paulo com dólares na cueca. Transmitiu o informe a Lula na mesma hora. Depois, relataria a um amigo que, em quatro anos de convivência, nunca vira Lula tão desolado. “Meu Deus, onde é que isso vai parar?”, balbuciou o presidente, como se tivesse perdido o rumo.
Mas o pior ainda estava por vir. Em 11 de agosto, o publicitário Duda Mendonça confessou, na CPI dos Correios, que recebera no exterior parte do pagamento pela campanha de Lula. Naquela noite, Bastos e Palocci foram conversar com o presidente na Granja do Torto. Sem rodeios, opinaram que a confissão de Duda o atingia pessoalmente e que a situação, a partir disso, fugia ao controle do governo. As análises impactaram Lula, que aceitou a sugestão de procurar Fernando Henrique mais uma vez para negociar.
O enviado desta vez foi Palocci, que fez ao ex-presidente um relato assustador. Contou que o governo se sentia desorientado e que os conselheiros próximos a Lula temiam por ele após as últimas revelações, que iam do grotesco (os dólares na cueca de um assessor petista) ao dramático (a comprovação de que Duda recebera dinheiro ilegal pela campanha, o que jogava o escândalo no colo de Lula). Disse que havia novos escândalos não revelados, como um rombo que passaria dos R$ 500 milhões no Banco do Brasil.
Palocci chegou a admitir que tudo aquilo era “um desastre, um desastre”. Noutro momento, teria dito: “Está tudo perdido.” Ao final, fez um apelo “em nome da democracia e do futuro do País” - que a oposição desse uma trégua para dar tempo ao governo de “consertar tudo”, exorcizando o seu visível lado podre. Ao final, indagou se Fernando Henrique aceitaria um encontro com Lula. O ex-presidente topou; exigiu apenas que houvesse um convite e um encontro públicos.
FRASES
Fernando Henrique Cardoso
Ex-presidente
“Eu não fiquei contra o impeachment porque eles me pediram, mas porque sou muito cauteloso nessas questões. Na época, não havia condições políticas para sustentar um pedido de impeachment de Lula. Criaria uma cisão no Brasil”
'Adversários políticos não devem ser tratados como inimigos'
Presidente endureceu o discurso
Depois dos primeiros contatos, Lula preferiu distanciar-se da oposição
Carlos Marchi
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso lamentou apenas que a sucessão de conversas com os principais ministros do primeiro mandato não tivessem redundado na criação de uma linha de interlocução direta com Lula, como seria tradicional em países evoluídos. Ele questionou o apelo genérico de Lula - “Precisamos conversar” -, quando o abraçou no velório de Ruth Cardoso, há dois meses. “Se ele quiser conversar, é só pegar o telefone e ligar”, rebateu agora o ex-presidente. “Eu atenderei, não só por educação, mas porque fomos aliados muitas vezes e, principalmente, porque o interesse nacional muitas vezes requer convergência.”
Mas a linha direta sustentada pelos então ministros Márcio Thomaz Bastos e Antonio Palocci, apesar de duradoura, acabou sem produzir uma interlocução direta entre o atual presidente e seu antecessor. Fernando Henrique confessa que começou a perder o ânimo quando, nos dias posteriores à conversa dramática com Palocci, Lula começou a usar uma retórica mais dura com a oposição e com ele próprio, o que lhe pareceu estranho para quem, dias antes, tinha lhe proposto um encontro apaziguador.
Um antigo assessor lulista explicou que o objetivo do presidente era criar um cenário de distanciamento crítico da oposição e de Fernando Henrique, para o caso de serem reveladas as missões secretas despachadas para Higienópolis. Já outro assessor deu uma versão diferente: que Lula teria achado que Fernando Henrique, embora tivesse prometido, não se mexera para ajudá-lo, como acenara aos mensageiros - muito embora na época o ex-presidente tenha feito declarações públicas contra o radicalismo da oposição, na contramão do furor oposicionista daqueles dias.
No dia 12 de julho, entre a conversa de Bastos e o relato dramático de Palocci, Lula bradou num palanque: “Não vão conseguir me dobrar!” Alguns dias depois, quando as denúncias começaram a atingir Palocci, o presidente disse não agüentar mais o “denuncismo” da oposição: “Querem acabar com o meu governo!”, desabafou.
Em São Paulo criticou duramente Fernando Henrique, à revelia da trégua combinada. Mas aí, qualquer que fosse a versão para explicar a contradição que a linguagem dura representava, o presidente já não se defrontava com um problema tão agudo e começava a dar-se conta de que se livrara do impeachment pelo desdobramento natural da situação política.
Antes e depois de apelar a Fernando Henrique, Palocci e Bastos conversaram também com outros líderes da oposição, entre eles José Serra (PSDB), então prefeito de São Paulo, e pelo menos os senadores Tasso Jereissati (PSDB-CE), então presidente nacional do PSDB, Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA) e Arthur Virgílio (PSDB-AM), líder dos tucanos no Senado.
Em todos os casos, os interlocutores oposicionistas, seduzidos pela conversa articulada de Palocci, ouviram e, ao final, fizeram promessa idêntica à de Fernando Henrique - a oposição poderia até falar em impeachment como argumentação de batalha, mas não chegaria a ele na prática porque acreditava não haver respaldo popular para afastar Lula nem base política na Câmara para aprovar a medida extrema