Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 30, 2008

J.R. Guzzo


"Não é preciso ser doutor em matemática para
deduzir que nunca tivemos, na história deste país, 
tantos homicidas disputando um cargo público"

Nada como o passar do tempo para os eleitores aprenderem a dar valor a certas coisas. Não era possível, anos atrás, achar nenhuma vantagem quando se dizia que em política, no Brasil, "só dá ladrão". O que poderia haver de bom para o cidadão, na hora de votar, diante de uma situação assim? Hoje, quando se olha para essa época, o brasileiro pode até sentir saudade. Mais uma vez, nas eleições municipais deste ano, ele será obrigado a votar – e constata que os ladrões deixaram de ser o que há de pior, realmente, na lista de candidatos a prefeito e vereador. A comprovação mais clara disso está numa informação prestada alguns dias atrás, mais ou menos de passagem, pelo vice-presidente do TRE do Rio de Janeiro, Alberto Motta Moraes: só no estado do Rio, afirmou ele, há pelo menos 100 candidatos às próximas eleições que são acusados de homicídio, ou já foram condenados por ter matado alguém. O interessante é que o desembargador Moraes, ao fazer essa revelação ao público, não estava reclamando das recentes decisões das nossas cortes superiores de Justiça, que não apenas permitem candidaturas desse tipo como proíbem que os tribunais eleitorais informem ao público sobre as fichas criminais dos candidatos; só citou os 100 envolvidos em assassinatos porque precisava justificar a instalação de um detector de metais na entrada do TRE fluminense. Pelo menos isso, pede o desembargador: como já foi notada a presença de pistoleiros no recinto do tribunal, quem sabe se possa proibir, daqui por diante, o ingresso de gente armada nas sessões da casa. Agora é botar fé – e rezar para que nenhuma autoridade mais acima venha a decidir que a colocação de um detector desses na porta do TRE é uma violação aos direitos dos candidatos.

Sem dúvida, como se vê, subimos de patamar. Além de indivíduos acusados de peculato, extorsão, corrupção passiva ou ativa e outros delitos que caem no campo genérico da ladroagem, nossas listas eleitorais se vêem enriquecidas, agora, por assassinos – não dois ou três, como talvez pudesse acontecer num momento de anomalia, mas no mínimo 100, e só no estado do Rio de Janeiro. Quantos seriam no Brasil todo? Não se tem no momento uma informação exata sobre esse número, mas, levando-se em conta que há quase 380 000 candidatos às eleições de outubro próximo nos cerca de 5 500 municípios brasileiros, não é preciso ser nenhum doutor em matemática para deduzir que nunca tivemos, na história deste país, tantos homicidas disputando um cargo público. Em que outro lugar do mundo haveria algo parecido?

É possível, em relação a isso, achar qualquer coisa, menos uma: que nas democracias é assim mesmo, e portanto não há nada a reclamar. É justamente essa, porém, a postura do Tribunal Superior Eleitoral e, acima dele, do Supremo Tribunal Federal. Em sua maneira de ver a vida, uma pessoa que tenha cometido crimes, por piores que sejam, só pode ser impedida de disputar um cargo público depois de ser condenada na última das últimas instâncias, e não lhe couber mais a possibilidade de nenhum recurso – até lá vale tudo, inclusive continuar matando gente. O STF e o TSE não apenas acham isso perfeitamente normal. Acham uma glória – uma exibição impecável da majestade da Justiça brasileira, que se coloca acima das "paixões da sociedade" e não se impressiona com a opinião de leigos. Talvez pudessem dizer, por exemplo: "Lamentamos, mas a Constituição nos obriga a decidir assim, e o STF não pode mudar o que está escrito na Constituição". Mas não dizem nada parecido. Ao contrário, orgulham-se daquilo que consideram a sua coragem de decidir contra "a opinião pública", que nada entende de ciência jurídica. Garantem que esse é o "preço da democracia" – ou se vive assim, ou se cai num estado policial.

Não cabe ao eleitor, nem mesmo, o direito de ser informado sobre os antecedentes criminais de quem lhe pede o voto. Em manifestação recente, na qual se opôs à divulgação pelas autoridades eleitorais dos nomes de candidatos com "ficha suja", o ministro Eros Grau, do STF, sustentou que "a exigência de comprovação da idoneidade moral do cidadão" é "uma violência". Equivaleria, a seu ver, à "delação". É uma opinião. E o fato? O fato é que existe algo profundamente errado com um sistema legal que permite a presença de 100 assassinos nas listas eleitorais do Rio de Janeiro. Quem diz isso não está, como sugerem nossos juristas, defendendo linchamentos ou ditaduras. Apenas se recusa a aceitar que, para haver democracia, é inevitável deixar a política aberta aos criminosos.

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