Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 30, 2008

A desforra via internet

Boca maldita

Pela internet dá para expor intimidades, inventar 
mentiras e até revelar verdades inconvenientes. 
E tudo ao alcance de apenas um clique


Sandra Brasil

Ilustração Pedro Alice

Os preservados muros de Pompéia confirmam: nos tempos do Império Romano, quando escrever nas paredes era uma forma de comunicação instantânea, até dor-de-cotovelo terminava grafitada. "Quem ama desce ao inferno", começa um dos raros versinhos publicáveis, contra uma certa "Vênus" (a cidade inteira devia saber quem era), que "partiu meu pobre coração". Nisso, os tempos não mudaram. O primeiro sentimento de quem se sente traído num relacionamento amoroso é o de se vingar. O segundo, e aí está a transformação, é ir para a internet. Com efeito instantâneo e praticamente indelével, o muro eletrônico pode aplacar os piores instintos, embora não seja emocionalmente muito saudável, quando não incorre na ilicitude. A facilidade da vingança pela rede é uma tentação. "A prática de fazer justiça com o próprio mouse tem resultado muito mais rápido e abrangente", diz a advogada Patricia Peck, de São Paulo, com a experiência de quem se especializou em crimes pela web.

O caso do empresário catarinense Marcelo Pereira Jorge, 30 anos, demonstra que o vale-tudo da internet tem exceções. Incomodado com o assédio à namorada, a bancária Juliana Rodrigues, 25, por parte de um colega de trabalho, Guilherme Gottardi, o empresário interferiu. "Pedi a ele que parasse de procurar minha namorada", conta Jorge. Tempos depois, apareceu como homossexual assumido no Orkut. "O título da página era: Eu sou e daí?, com uma bandeira colorida ao fundo", diz. Juliana também ganhou perfil falso, com fotomontagens em poses eróticas. Jorge relatou o problema ao banco, que iniciou uma investigação interna. Em meados de agosto, Gottardi foi flagrado criando um novo perfil falso de Juliana em uma lan house de Florianópolis. Está preso e aguarda a tramitação do processo. A contadora paulista Fabiana Pena, 29, conta que, depois de terminar um namoro de oito anos com um analista de sistemas (por traição dele), teve sua página no Orkut invadida por fotomontagens em que aparecia nua – "Eu era apresentada como garota de programa, cobrava 300 reais por encontro e dava meus telefones verdadeiros" – e ainda foi responsabilizada por uma dívida eletrônica do ex. Fabiana registrou queixa na polícia, encaminhou vários pedidos ao Orkut e a página saiu do ar quatro meses depois.

Depois que a raiva passa, muitos casos se transformam, apenas, em piada. Como a vingança da atriz Tricia Walsh Smith, 49 anos, que se filmou em casa dizendo que o marido de quem estava para se separar, Philip Smith, 77, conhecido dono de teatros na Broadway, alegava que era impotente, mas mantinha na gaveta Viagra e preservativos. Sempre se filmando, Tricia ligou para a secretária de Smith, explicou o caso, pediu esclarecimentos – e colocou o vídeo no YouTube. Em maio, o inglês Paul Osborn, 44, pôs sua mulher, Sharon, 43, "mentirosa e adúltera", à venda no site de comércio eletrônico eBay "pelo melhor preço". Sharon deu queixa na polícia e ele tirou a oferta. Recentemente, uma australiana colocou à venda no mesmo eBay, com foto para provar, a calcinha de renda "enorme" que achou na sua própria cama, junto com uma embalagem de preservativo. "Talvez alguém queira usar como xale", tripudiou. Até o fundador da enciclopédia eletrônica Wikipedia, Jimmy Wales, 42, dispensou on-line a namorada, Rachel Marsden, 33, registrando em seu perfil no site que não estavam mais juntos. Ela retrucou pondo à venda pela rede umas roupas bem usadas que ele havia deixado em seu apartamento.

Há sites especializados na vingança em si, sendo o naosaiacomele.com um dos mais procurados no Brasil. Matéria-prima não falta: ele é alimentado por mulheres que foram traídas com nome (às vezes completo, às vezes só apelido) e, sempre, foto do homem que as traiu. "Se você já foi traída, dispensada, usada ou trocada; se você já passou por situações constrangedoras, ficou indignada, sentiu vontade de sumir do mapa ou se simplesmente quer desabafar as mágoas, seu lugar é aqui", anuncia, na apresentação. Criado há dois anos por Amber Filgueiras, 32 anos, recebe 1 500 visitas diárias e trinta novos perfis por semana. "No começo era tudo lindo e maravilhoso, mas depois já viu. Sair para jantar? Ah, no máximo ele me levava pra comer um dogão do Zé Porcalhão e ainda era com a filosofia do cada um paga o seu", conta Renata sobre o ex, um tal de TTKO. "Daniel pega de magrinha a gorda, independente de ser bonita ou feia. Eu caí nessa", admite Gabriela. Já Rodrigo "é da raça cachorro sem-vergonha, bonito, do tipo que seduz, leva para a cama e depois que consegue o que queria te descarta", desabafa uma traída anônima. Quem achou o conteúdo das queixas muito ameno, considerando-se o que pode a fúria de uma mulher abandonada, tem razão. "Tiro do ar tudo o que é muito pesado. E, se o denunciado pedir para ser deletado, eu atendo", informa Amber, cujo namoro vai muito bem: "Só quero ganhar dinheiro na internet". Outro site, traida.net, mistura desabafo com esclarecimentos e conselhos oferecidos por psicólogas e advogadas. Num recente bate-papo, mulheres relatavam ter mandado e-mails com as formas mais comuns de vingança contra um ex: dizer que ele é impotente, lotar a caixa postal dele com mensagens malcriadas e usar a senha do infeliz para deixar recados desaforados na página da outra no onipresente Orkut. Lá, por sinal, vingança é tema de mais de 1 000 comunidades; a mais concorrida, Doce VINGANÇA (assim, em maiúsculas), tem 107 054 membros.

"A vingança surge como uma tentativa de equilibrar uma situação que ficou desequilibrada", ameniza a terapeuta Anna Sharp, autora de manuais de auto-ajuda como Quem Não Trai? e Resgate de um Casamento. "Mas, com a abrangência e a rapidez da internet, a briga que acontecia entre quatro paredes, com a participação apenas dos envolvidos, pode tomar proporções inimagináveis." A internet de fato parece ter o dom de separar os bons sentimentos dos maus – e só dar vazão a estes. Há ainda a agravante da permanência. "Na internet, as imagens se perpetuam. Tem sempre alguém que guarda", alerta Wanderson Castilho, dono da E-Net Security, empresa especializada em crimes eletrônicos. Segundo ele, qualquer e-mail enviado para doze pessoas pode chegar a 30 000 computadores em um dia. Provavelmente nem um único deles dizendo que perdoar é umano...

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