O Globo |
27/8/2008 |
Embora as pesquisas de opinião revelem até agora que o candidato democrata Barack Obama está recebendo a mesma proporção de votos do eleitorado branco que receberam John Kerry e Al Gore, indicando que a questão racial não está afetando até o momento o desempenho do partido nesta eleição, há uma preocupação excessiva dos dirigentes partidários em enfatizar o que a eleição de um candidato negro como o senador significa no processo histórico da luta pelos direitos civis. Obama é o representante mais visível de uma corrente de políticos negros pós-direitos civis, ele mesmo já se classificou como pós-racial, mas o fato é que a questão racial está subjacente em todos os principais discursos e nos principais pronunciamentos nestes primeiros dias da convenção democrata. A questão racial é tão delicada para os democratas que também eles são os primeiros a apontá-la como uma das responsáveis pela queda na popularidade de Obama, numa acusação velada ao reacionarismo de certa parte do eleitorado americano. Como se a insegurança quanto à experiência de Obama para liderar o país não fosse a principal razão da indecisão dos eleitores. Até mesmo a dissidência explícita instalada na base dos militantes democratas que apóiam a senadora Hillary Clinton é atribuída a uma faixa específica de eleitores: a classe média baixa de trabalhadores brancos. Como os eleitores negros e hispânicos democratas, nicho eleitoral dos Clinton, passaram-se quase que totalmente para o lado de Obama, a quase metade dos eleitores de Hillary que se dizem ainda contrários à candidatura do senador está localizada majoritariamente na faixa da classe média baixa branca. Mesmo a classificação pós-direito civil, cunhada pela jornalista negra Gwen Ifill, uma estudiosa do tema, não encontra receptividade nos antigos líderes negros contemporâneos de Martin Luther King, como o reverendo Joseph Lowery, de 86 anos, que se espantou quando ouviu a designação pela primeira vez. Outro representante dessa onda de jovens líderes negros, intelectuais formados nas melhores universidades do país, do qual Obama é o líder, é o senador pelo Colorado Peter C. Groff, doutor em Direito e políticas públicas. Em uma entrevista no primeiro dia de convenção, ele não parou de destacar a importância de eleger Obama e, dentre outras virtudes, citou o fato de que crianças negras se veriam refletidas no presidente dos Estados Unidos, "uma pessoa como eu", e teriam a certeza de que elas também poderiam alcançar qualquer sonho. O discurso de Michelle Obama, por exemplo, na primeira noite da convenção, teve a clara preocupação de tranqüilizar os eleitores que a vêem como a parte mais radical da família. Ao contrário de Obama, que trabalha com o conceito de pós-direitos civis, Michelle era vista até a noite de segunda-feira como uma militante radical dos direitos civis dos negros. Não foi à toa que a capa polêmica da revista "The New Yorker", a pretexto de ressaltar as idiossincrasias contra a candidatura Obama, retratou-a como uma guerrilheira, com o cabelo black power dos anos 60. Assumindo o papel de mulher amorosa, mãe carinhosa, filha dedicada e irmã agradecida, Michelle Obama, num discurso com tons demagógicos que agradou ao americano médio, lustrou sua imagem, arranhada desde o dia em que disse que somente com as primeiras vitórias de Obama nas primárias teve orgulho de ser americana. Por isso ontem ela sublinhou a frase "eu amo este país". O discurso dela foi todo cuidadosamente elaborado para passar a imagem de uma família unida que ocupará a Casa Branca com os valores que regem a sociedade americana. Ela mesmo, habilmente, se referiu a dois dos principais motivos de rejeição de Barack Obama, o nome, que muitos insistem ser sinal de que é muçulmano, e a origem: "O que me impressionou logo que conheci Obama foi que mesmo que ele tivesse esse nome engraçado, e mesmo que tivesse sido criado do outro lado do continente, no Havaí, sua família era muito parecida com a minha". Também teve a preocupação de ressaltar a origem operária do pai, na verdade um funcionário público, e os valores do trabalho duro e da dignidade que regem a vida da família Obama, que seria a encarnação do "sonho americano", que permite a ascensão social dos que trabalham duro e se dedicam, agora incluídos os negros. Michelle arranjou um jeito habilidoso de homenagear tanto Hillary Clinton quanto a si mesma quando lembrou que a convenção coroava a determinação dos que lideraram as lutas anteriores, como o 88º aniversário do direito de voto das mulheres; e também seu marido, o primeiro candidato negro à Presidência dos Estados Unidos. Fez isso ao relembrar os 45 anos "daquele dia de verão quente onde Dr. King elevou nossos anseios e nossos corações com o sonho para nossa nação. Eu estou aqui hoje como uma conseqüência dessa história, sabendo que meu pedaço do sonho americano é uma bênção duramente conseguida por aqueles que vieram antes de nós". Os organizadores do show de auditório em que se transformou a convenção democrata só não precisavam ter exagerado na dose, encerrando a apresentação da candidata a primeira-dama com a música "Isn't she lovely", numa ação de marketing político mais explícito que todas as anteriores. Já que os adesivos colocam a eleição de Obama como uma continuidade da dinastia dos Kennedy, nada mais claro que a intenção de transformar Michelle Obama em uma Jaqueline Kennedy pós-moderna e pós-racial. |
Entrevista:O Estado inteligente
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