A decisão do Congresso de protelar a restrição aos
anúncios de cerveja na TV é uma vitória do atraso
No projeto do governo que pretende restringir a publicidade de cerveja na televisão embutia-se um confronto entre o progresso e o atraso, a civilização e a barbárie, o interesse público e os interesses privados. Encaminhado ao Congresso em regime de urgência, estava na semana passada na iminência de ser posto em votação quando um acordo entre as lideranças partidárias, ao retirar-lhe a urgência, remeteu-o para as calendas gregas. Venceram o atraso, a barbárie e os interesses privados. Nos vídeos brasileiros a cerveja continuará jorrando, generosa e farta, em mensagens que identificam seu consumo à alegria, à jovialidade, ao sucesso, à beleza e às mulheres de biquíni.
O projeto visava a corrigir uma anomalia criada pela lei de 1996 que proibiu o anúncio de bebidas alcoólicas antes das 21 horas. A cerveja ficara de fora sob a justificativa de ter teor alcoólico menor. Não é preciso ser um profissional da saúde para concluir que o que importa não é o teor alcoólico, mas a quantidade de bebida ingerida. Falou mais forte, no entanto, o lobby da cerveja, representado pela coligação que reúne fabricantes, agências de publicidade e emissoras de televisão. Essa mesma coligação venceu outra vez na semana passada. Num Congresso coalhado de proprietários de emissoras de TV (eta, Brasil!), encontrou amparo amigo em deputados como o líder do PMDB, Henrique Alves (de uma família dona de concessões no Rio Grande do Norte), e Antonio Carlos Magalhães Neto (idem na Bahia).
O combate ao abuso do álcool é uma das principais bandeiras do ministro da Saúde, José Gomes Temporão. Uma de suas iniciativas foi a tentativa de proibir a venda de bebidas nos bares e restaurantes à beira das estradas. Venceu apenas pela metade, pois no Congresso abriu-se uma exceção para bares e restaurantes situados em áreas urbanas. A tentativa de fazer com que a publicidade de cerveja não se espraiasse tão à vontade, lotando os intervalos do futebol, nos fins de semana, ou se imiscuindo nos noticiários e nas novelas, nos horários de maior audiência, era outra de suas prioridades. O argumento do ministro é a saúde pública. Este é o país dos 35 000 mortos por ano em acidentes de automóvel, em grande parte causados por embriaguez do motorista. É também o país dos assassinatos fúteis no bar e da violência doméstica, para os quais o álcool dá contribuição decisiva.
Nas últimas semanas o lobby da cerveja se fez presente em anúncios nos jornais e na TV. O anúncio da TV começava com uma falsidade ("Querem proibir a publicidade de cerveja", dizia, quando na verdade se tratava de restringir sua veiculação) e avançava pela argumentação de que a publicidade nada tem a ver com a embriaguez dos motoristas ou a violência dos bêbados. No mundo angélico assim descrito, ninguém bebe porque viu anúncio da bebida. Ou seja: a publicidade não provoca efeitos. É um mero exercício platônico, inócuo como comprimido de farinha. O golpe de graça estava guardado para o grand finale, quando, em defesa da publicidade da cerveja, invocava-se a liberdade de expressão. Nada menos do que o nobre conceito, flor do Iluminismo, da liberdade de expressão – como se pairasse a ameaça de censura a algum evento ou se tramasse a repressão a alguma corrente de opinião.
Num anúncio nos jornais, em que também se insistia na tônica da inocuidade da publicidade – pintada como tão responsável pelos bêbados quanto os abridores de garrafa (!) –, o que estaria em jogo seria "o direito sagrado" de "se informar e formar a sua opinião". Como se os anúncios de cerveja tivessem algo a informar além da preferência do Zeca Pagodinho, e como se à vista deles se pudesse formar opinião mais complexa do que escolher o mais revelador entre os biquínis das moças.
Os anúncios foram elaborados pela Associação Brasileira de Agências de Publicidade (Abap). Entidades da classe ou lideranças publicitárias também se opuseram, um ano e meio atrás (e também invocando o santo nome da liberdade de expressão em vão), à lei que proibiu os outdoors em São Paulo. Foi a melhor coisa que aconteceu na paisagem da cidade em muitos anos e conta com amplo apoio da população. Com a manobra da semana passada os anúncios de cerveja sem restrição de horário ganharam uma sobrevida talvez de anos. Mas é inevitável que um dia não mais se apresentarão sem freios. Fazem parte da consciência do nosso tempo as idéias de que não se deve estimular o consumo de produtos como cigarros e bebidas alcoólicas, especialmente junto às crianças e aos jovens, e de que a publicidade na TV é um dos mais poderosos estímulos, especialmente junto às crianças e aos jovens.
Há alguns anos também os anúncios de cigarro campeavam soltos. Fumava-se nos programas e os estúdios ficavam cheios de fumaça. Anúncios de cigarro, que costumavam ser tão glamourosos como são hoje os de cerveja, ou apresentadores puxando suas tragadas no ar hoje soariam chocantes. Não está longe o dia em que também os anúncios de cerveja soarão chocantes.