Destruídos e abandonados Número de vítimas do ciclone em Mianmar pode chegar a 100 000; mas a paranóica ditadura militar recusa ajuda internacional Duda Teixeira
Reuters | POR CONTA PRÓPRIA Monges e moradores retiram destroços deixados pelo desastre: o Exército, que reprimiu protesto em setembro, não ajuda em resgates | O grau de brutalidade de um regime autoritário pode ser medido por sua disposição em colocar a própria sobrevivência política à frente de qualquer outra consideração, inclusive a vida de seus infelizes súditos. Nesse quesito, a junta militar que governa Mianmar, também conhecido pelo nome antigo, Birmânia, merece a classificação máxima. Na madrugada de sexta-feira 2 para sábado, o ciclone Nargis, uma destruidora força da natureza com ventos de 190 quilômetros por hora, atingiu o país. Durante dez horas, o mundo veio abaixo. Em alguns lugares da região litorânea, de alta densidade populacional, nove em cada dez casas desabaram. A água do mar subiu e invadiu tudo, afogando um número incalculável de pessoas. O fenômeno foi tão violento que redesenhou os contornos das regiões à beira-mar. Quantas vítimas o ciclone deixou era uma perspectiva em aberto, uma semana depois do desastre. Oficialmente, falava-se em 23 000 mortos e 42 000 desaparecidos, mas ninguém imagina que o regime de Mianmar, que se deu ao luxo de recusar ajuda internacional, tenha capacidade de fazer estatísticas. Estimativas da ONU colocavam o número possível de mortos em estarrecedores 100 000 e o de desabrigados, em 1,5 milhão. Os estrangeiros que conseguiram entrar no país – após cumprir as exigências, especialmente surreais, de visto e autorização oficial – viram sobreviventes, isolados entre os destroços de seus vilarejos ou em filas resignadas, esperando uma ajuda que não chegava, com fome e altíssimo risco de doenças decorrentes da água contaminada pelos corpos em decomposição boiando nos rios e nos arrozais inundados. Países e organizações internacionais prontos para dar socorro aos flagelados primeiro se ofereceram e depois quase imploraram. O ministro das Relações Exteriores da França, Bernard Kouchner, chegou a falar em ajuda humanitária à força. Os generais da junta militar, reclusos e arredios, ora deixavam algumas equipes de resgate entrar, ora suspendiam tudo. AFP | DEPOIS DO VENDAVAL Corpos boiando perto de Labutta, no caminho do ciclone: organismos internacionais precisam implorar para ajudar | Os dois primeiros aviões da ONU só chegaram na quinta-feira, com seis dias de atraso. Em comparação, quando houve o tsunami no Oceano Índico no fim de 2004, que matou 200.000 pessoas, três dias depois já havia aviões de hora em hora abastecendo a Indonésia com alimentos, remédios e equipes médicas. "Preferimos receber as doações e distribuí-las às regiões atingidas com nossos próprios recursos", desconversou um porta-voz do governo birmanês, despertando as piores suspeitas. Na sexta-feira passada, a ONU suspendeu temporariamente o envio de alimentos porque o Exército apreendeu os primeiros carregamentos e a comida não estava sendo distribuída. "Nós já trabalhamos com ajuda humanitária na Coréia do Norte e no Sudão, mas esse é o regime mais fechado com que já tivemos de lidar", disse a VEJA o americano Christoph Gorder, vice-presidente da Americares, uma ONG especializada em distribuir remédios em regiões atingidas por desastres naturais. AFP | AS SETE PRAGAS Cidade destruída no delta do Rio Irrawaddy: devastação, fome, contaminação, doenças, desabrigo e ditadura | A ditadura atual é uma mutação do regime militar iniciado há 46 anos, quando os militares isolaram o país e lançaram o que chamaram de um caminho próprio rumo ao socialismo. Sucederam-se golpes dentro do golpe, enquanto vicejavam o isolamento e a corrupção, destruindo uma economia primitiva, mas que era capaz de colocar o país entre os maiores exportadores de arroz do mundo. Hoje, Mianmar tem metade dos 53 milhões de habitantes vivendo na miséria e, fora da África, é o recordista de pobreza. O governo é formado por generais obscuros e supersticiosos: em 2003, eles decidiram mudar a capital de Yangun para Naypyidaw, supostamente a conselho de astrólogos. A população só ficou sabendo dois anos depois, quando os funcionários públicos receberam ordens de mudar de cidade. Em setembro passado, protestos de monges budistas contra o regime militar foram reprimidos com violência. Apesar da situação catastrófica no país, o governo manteve o plebiscito constitucional marcado para sábado 10. Mas se alguém, em meio ao desastre indescritível, quisesse saber o que diz a nova Constituição, inteiramente criada pelo regime, precisaria pagar para ler.
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