O Globo |
14/5/2008 |
A comparação do lulismo com o peronismo fica cada vez mais forte à medida que o presidente Lula vai exacerbando sua faceta populista e, desprezando a intermediação institucional, acelera a estratégia de ligação direta com o eleitorado com comícios permanentes para o lançamento do PAC, um programa de obras eleitoreiro que passa por cima até mesmo de ícones do petismo, como a ex-ministra Marina Silva, e de questões centrais, como a política para o meio-ambiente, para concretizar o sonho do Brasil grande, potência mundial, uma obsessão dos governos militares retomada pelo governo do líder sindicalista. A auto-estima exagerada é um fenômeno psíquico que provoca o sentimento de onipotência que, segundo o psicanalista Joel Birman, faz o seu possuidor acreditar estar acima das regras que o constrangem ou, na linguagem psicanalítica, ser o "eu ideal", que tem as respostas para tudo. Na política, a auto-estima exagerada pode produzir ditadores ou, no nosso caso, uma versão pós-moderna do caudilhismo latino-americano. A centralização das ações políticas em torno da figura do líder é o que faz o PT não ter tido qualquer outro candidato a presidente que não fosse Lula desde 1989 e, depois de quase seis anos de poder, não ter nenhum candidato viável num governo bem avaliado popularmente. A aventura do terceiro mandato consecutivo está inserida nesse contexto de tentativa de utilizar instrumentos democráticos como os plebiscitos para perpetuar no poder dirigentes com características de caudilho. É o caso de Hugo Chavez na Venezuela, que veste com perfeição o estereótipo do caudilho, pois, além de ser um líder populista, ainda por cima é militar. Historiadores consideram que o PT pós-Lula, em vez da saída proposta pelo governador Aécio Neves, de conciliação política com o PSDB para uma espécie de governo de união nacional, pode ter o mesmo destino do peronismo argentino, com diversos grupos disputando o espólio político do lulismo, assim como no peronismo houve espaço para o radicalismo de esquerda dos montoneros e também para o conservadorismo de direita de Menem. Não teria sido por acaso, portanto, que o presidente Lula, não havendo condições políticas de lançar dona Marisa Letícia como sua sucessora, como fez agora Nestor Kirchner na Argentina, na melhor tradição peronista (basta lembrar que Perón fez presidentes Evita e Isabelita, suas mulheres), procurou na figura de uma mulher, a ministra Dilma Rousseff, uma candidata que teoricamente seria neutra para seu projeto político que, se dizia, era o de retornar em 2014. Aparentemente foi abandonada a idéia, por inviável, de que um sucessor aliado aceitaria realizar apenas um mandato, para permitir o retorno do "líder". O próprio Lula teria comentado que não queria fazer de seu sucessor "um inimigo". A história demonstra que dificilmente um político eleito, mesmo que tenha sido um "poste", aceita a idéia de submissão eterna ao "chefe" político. Recentemente, os ex-prefeitos Luiz Paulo Conde, do Rio, e Celso Pitta, de São Paulo, que se voltaram contra seus "criadores", Cesar Maia e Paulo Maluf, respectivamente, são bons exemplos. O general Golbery do Couto e Silva, guru político de toda uma geração de militares e planejador do projeto de distensão política quando chefe do Gabinete Civil do governo Geisel, chegou a essa conclusão depois de ver o General João Baptista Figueiredo, que ele e Geisel fizeram presidente da República para continuarem conduzindo o processo de abertura democrática, atuando com toda independência e sob novas influências políticas. "Quando o sujeito sobe a rampa do Palácio do Planalto com aqueles soldados todos batendo continência, chega lá em cima convencido de que está ali por seus próprios méritos, e sempre haverá alguém para garantir isso a ele", dizia, irônico, Golbery. Também em comum com o peronismo é a crescente influência sindicalista no governo Lula, um processo bem típico, segundo o professor de História Contemporânea da UFRJ Francisco Carlos Teixeira, do período pós-2ª Guerra Mundial, onde há a combinação de longas permanências de partidos operários no poder com o estado de bem-estar social. Vai acontecer então o que Francisco Carlos chama de "colonização" das estruturas do Estado por esses partidos. "Eles ocupam amplos espaços no Estado, e perdem qualquer élan revolucionário, como o peronismo na Argentina e o PT no Brasil". Segundo ele, mesmo que mantenham uma retórica obreirista, "a moldagem da ação política é sindicalista, de negociação para resultados, estão disponíveis para acordos que representem uma doação ou aquisição de alguma fatia do butim que o estado de bem-estar social cria em vários países". Essa aristocracia operária, que o sociólogo Chico Oliveira classificou de "nova classe", acaba rapidamente criando esses nichos coloniais dentro do Estado. "O objetivo deles não é político no sentido antigo, de um projeto de Estado, mas é setorial". Na análise de Francisco Carlos Teixeira, esse processo ocorreu claramente com o Solidariedade, na Polônia, e com o PT. Como tem como alavanca os sindicatos e todas as organizações que derivam do sindicato, esse tipo de governo, segundo Francisco Carlos, "não consegue ter um planejamento do Estado como um todo. As propostas para a mudança ficam barradas pelos interesses setoriais que colonizaram o Estado". O interessante é que o candidato Lula, em 2002, aparece em uma passagem do documentário de João Moreira Salles "Entreatos" chamando Lech Walessa, o líder operário polonês do Solidariedade e posteriormente presidente da Polônia, de "pelegão". Mas, hoje, quem é acusado de pelego é o próprio Lula.
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