Entrevista:O Estado inteligente

domingo, maio 04, 2008

João Ubaldo Ribeiro Campo de extermínio também não

Como sabem os conhecedores da História do Brasil, houve diversas tentativas de tornar a ilha de Itaparica uma nação independente. Dizem que a famosa Conspiração da Gameleira esteve perto disso, mesmo porque os portugueses, até então donos do pedaço, queriam um porto livre e o equivalente ao que hoje se chamaria paraíso fiscal e, portanto, até encorajaram o movimento. Nada se consumou, contudo, porque os conspiradores viviam adiando tudo para a próxima segunda-feira, até que todos os envolvidos encheram o saco, o que acontece ainda hoje, quando alguém puxa o assunto.

Não conto, assim, com a soberania da ilha para proteger-me e, portanto, continuo súdito baiano, sujeito a todos os riscos que isso envolve, os quais agora me parecem gravíssimos. Soube primeiro pelo telefone. Uma rádio queria entrevistar-me sobre a burrice dos baianos. Estranhei um pouco, porque estou acostumado à preguiça e sou obrigado a confessar que não tenho o menor treinamento para perguntas sobre burrice. Admiti meu despreparo e pedi esclarecimentos, que me vieram não só desse entrevistador como de outros, durante o resto do dia.

A venerável Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, que completa agora 200 anos, tirou notas baixíssimas nuns exames que o Ministério da Educação faz por aí e que nunca entendi (agora sei que por burrice). Mas o fato é que as notas foram minúsculas e, claro, um tanto vexatórias para tanta tradição. Procurado para explicar a situação, o coordenador do curso de graduação da faculdade foi muito claro. Disse que a razão é que os baianos têm baixo QI. O instrumento típico deles, por exemplo, é o berimbau, que só tem uma corda. Se tivesse mais, a baianada se enrolaria e não aprenderia a tocar. E a música deles é o Olodum, que para ele não passa de barulho.

Até aí, tudo muito certo, viva a liberdade de opinião. Mas o professor deu a entender, ou disse claramente, algo um pouco mais sério. Disse que não podia fazer nada quanto ao assunto, porque ''não tinha como mudar a genética''. Considerando-se que ele se referiu a manifestações culturais de origem africana e que praticamente todos os baianos têm ascendentes africanos, quando não são negros mesmo, creio que ele quis dizer que os baianos são burros porque negros, em maior ou menor grau. Silogismo perfeito: a)todo baiano é negro; b)todo negro é burro; c)logo, todo baiano é burro.

Fiquei meio assim com esse negócio, independentemente da lei Afonso Arinos e correlatas, porque se torna patente que o professor acredita na superioridade de raças e o último livro que leu sobre o assunto foi o célebre Ensaio Sobre a Desigualdade das Raças Humanas, do Conde Gobineau, no século 19. De lá para cá, não tomou conhecimento da irrelevância do conceito de raça e de todos os avanços científicos e sociais sobre o assunto. Temos então, segundo a palavra pública de uma autoridade médica e educacional, na esculhambação que é este desafortunado País, a revalidação de idéias nazistas e ''eugenistas'', a afirmação de que existe pelo menos uma raça inferior, a negra.

Acho que, em outras circunstâncias, esse cientista devia ser chamado para novo exame no Conselho Regional de Medicina, da mesma forma que o pediatra que tratar pacientes de caxumba com injeções de bismuto e aplicação de sanguessugas na queixada. Mas claro que ele não é um charlatão e talvez até seja um profissional competente. Portanto, na condição que ocupa, é irresponsável, leviano, arrogante, inconseqüente e não parece seguir o sábio conselho de primeiro ligar o cérebro e só depois acionar a boca. E espelha, talvez para entrar no clima geral, a atitude de desdém que qualquer pessoa com o mínimo de autoridade no Estado tem para com os governados.

Imagino que, se o tempo e o lugar fossem diversos, ele não se oporia a que, em mais um hercúleo esforço desse governo em prol da saúde pública, se fizesse um cadastro geral dos baianos, com a avaliação do QI (outro conceito obsoleto e equívoco) de cada um e, a depender do resultado, castração ou esterilização de todos e todas que não se encaixassem no padrão mínimo oficial, assim não proliferando e dando o único jeito que se pode dar na genética, que é impedir a reprodução dos menos dotados. (Atenção, só estou falando numa hipótese, não estou sugerindo nada, pois de repente alguém lá em riba gosta da idéia e, antes de que se possa fazer alguma coisa, uma Medida Provisória terá propiciado a capação de um vasto número de meus hoje cabreiros conterrâneos.)

Posso estar agora errado, porque o professor pode vir a público retratar-se e pedir desculpas, ou, mais habitual ainda entre autoridades, mentir com o mesmo charme que o presidente da República e seus auxiliares e negar tudo. Mas, na hora em que escrevo (e o que escrevo serve para o futuro), esse professor devia ser punido pelo CRM e pelo serviço público, destituído do cargo, preso e processado por professar convicções racistas e ilegais. Mas não vai haver nada disso, é óbvio. E, se por acaso alguma atribulação adviesse a ele, não teríamos razão de ter pena, não só por não se tratar de um pobre homem como porque ele arranjaria, mole-mole, o emprego de cirurgião-chefe da Ku Klux Klan.

Espero, no próximo ano, poder voltar a Itaparica. Como não me agradaria muito ser capado (nada do que vocês estão pensando, é que eu gostaria de morrer inteirinho mesmo), vou me informar antes sobre como vai a coisa lá, inclusive sobre se não vão criar o Campo de Concentração de Axé-Witz para QI''s desprezíveis e inaugurar um busto do dr. Mengele na frente do Hospital das Clínicas.

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