Entrevista:O Estado inteligente

domingo, maio 04, 2008

Daniel Piza

Argentina & Brasil


Nós, brasileiros (e não apenas nós), adoramos ir para Buenos Aires, cidade cuja urbanização nos parece tão mais satisfatória, com suas avenidas largas, espaços públicos, tantas livrarias quanto o Brasil inteiro, mais seus cafés, onde comemos chorizo e bebemos malbec e pensamos em Jorge Luis Borges, para não falar de Cortázar, Saer, Arlt e tantos mais. Admiramos a ausência de analfabetismo e a coragem dos panelaços, assim como o cinema recente. Não cedemos nada em nossa preferência (e não só nossa) por Pelé, mas admiramos o futebol de Maradona e seus herdeiros. E eles, argentinos, também gostam muito dos brasileiros, da música de Tom Jobim e Chico Buarque e muitos outros, do futebol de Pelé e Rivellino, dos restaurantes de São Paulo e da paisagem do Rio, para não falar das praias catarinenses. Ultimamente invejam até mesmo nossa suposta estabilidade política.

A rivalidade ludopédica é apenas um dos itens dessa relação que tem muito mais semelhanças do que diferenças, como se vê no livro de Boris Fausto e Fernando Devoto, Argentina Brasil 1850-2000, que acaba de sair por lá. O Brasil tinha condições para largar melhor, império relativamente pacífico que era, mas enquanto cozinhava no fogo moderador do Segundo Reinado a Argentina fazia a lição de casa: investiu pesadamente em educação e infra-estrutura, abriu a economia, adotou a república federalista secular e aboliu antes a escravidão. Em conseqüência, entrou no século 20 como uma das maiores economias do mundo, com PIB per capita quatro vezes maior que o brasileiro. Em compensação, de meados do século passado para cá o Brasil encurtou distâncias, e só não tem qualidade de vida comparável por causa do boom populacional; tem seis vezes mais habitantes em território três vezes maior.

As semelhanças ficam por conta, primeiro, justamente desse processo que vive de ciclos e anticiclos e nunca parece chegar ao patamar sonhado. Os dois países padecem da mesma história de um Estado que ao mesmo tempo intervém demais e não faz sua parte, que é omisso porque obeso - de resto, algo característico de toda a América Latina, como mostra Octavio Paz no México em O Labirinto da Solidão. O subjetivismo na troca de idéias, o clientelismo da máquina pública e a obsessão com uma identidade essencial aproximam o país de Borges, Piazzolla e Maradona do de Machado, Jobim e Pelé. Borges, por sinal, ecoou o Machado do ensaio Instinto de Nacionalidade ao escrever: ''Devemos pensar que nosso patrimônio é o universo; experimentar todos os temas, e não nos limitarmos ao argentino para sermos argentinos.''

De vez em quando leio ou escuto sobre o atual momento da Argentina que ''eles estão melhores do que nós'', pois sua economia cresce 8% ao ano mesmo depois de terem rasgado tantos contratos com a banca internacional, etc. Mas, como argumenta o cientista político Marcelo Acuña em outro livro recém-lançado, El Corralito Populista, o populismo peronista continua vivo e tem um custo enorme para a economia argentina. O livro de Acuña foi elogiado por Marcos Aguinis, o autor de O Atroz Encanto de Ser Argentino (publicado no Brasil pela Bei). Como os franceses, os argentinos adoram esses livros sobre sua nação, livros com títulos como A Santa Loucura dos Argentinos. Acuña, apesar do tom exagerado e repetitivo, está mais interessado em dissecar a herança peronista. É muito difícil discordar de seu diagnóstico sobre a farra fiscal corporativista que marca o estilo político do país de modo quase contínuo há tantas décadas.

Sobre o atual governo do casal Kirchner, Acuña nota que a inflação tem sido maquiada, para 8%, quando a real sobe a 18%, e que, ao contrário de Brasil e México, que aproveitaram a bonança internacional para reduzir dívidas, o gasto público só faz crescer e o dólar é artificialmente valorizado. Nesses dias em que estive lá, para participar da invejável Feira do Livro, os jornais só discutiam a ameaça de greve dos produtores agrícolas, submetidos a uma tributação ridícula, que penitencia o lucro em vez de incentivá-lo. E não dá mesmo para levar muito a sério um país onde a presidente se senta à mesa com os motoristas de táxi da capital para resolver questões da categoria. A máquina argentina precisa urgentemente de reformas; sua base institucional é ainda mais falha do que a brasileira.

Não que o Brasil esteja muito melhor. Enquanto lá se briga porque o crescimento alto não é sustentável, aqui se briga para chegar a um patamar mais alto de crescimento sustentável, digamos de 5%. E, apesar dos elogios à menor irresponsabilidade fiscal e cambial, o problema brasileiro é bem semelhante ao argentino: o Estado está alugado para grupos de interesse, desde sindicatos até empreiteiros, passando por ONGs e vários outros esquemas fraudulentos. (As denúncias sobre desvios de verbas do BNDES estão aí para mostrar que não temos peronismo, mas temos mazelas bastante aparentadas.) Reformas como a política, a trabalhista, a tributária e a jurídica são fundamentais, mas somem no vaivém político. E o comércio exterior depende demais dos preços de commodities. A modernidade, em que educação e tecnologia fazem tanta diferença, continua um passo além.

Ambos os povos são passionais, cada um a seu estilo. O argentino é exigente demais, briguento, senão neurótico; o brasileiro prefere sempre o consenso, por mais fracos os critérios em que se dá. Os fantasmas argentinos, como Perón, pesam; os brasileiros, como Getúlio, finge-se que não. O argentino se acha europeu; o brasileiro lamenta não ser. Se num país o complexo de superioridade descamba em autocrítica melancólica, no outro o sentimento de inferioridade está sempre pronto à auto-exaltação. De qualquer forma, a questão é muito parecida, porque envolve escapar de dilemas culturalmente impregnados ao longo da história, abandonar mitos como o da esperteza mestiça e enfrentar os problemas de modo mais pragmático, menos personalista. Aí não há Mercosul que dê jeito. Sem trabalho e clareza não existe solução.

RODAPÉ

Embora ainda seja verdadeiro que a literatura da segunda metade do século 20 não tem comparação com a da primeira, marcada por autores como Proust, Joyce, Kafka, Mann, Yeats e Eliot, ao menos vamos pouco a pouco reconhecendo que não estivemos assim tão desamparados. Nomes como Thomas Bernhard e Roberto Bolaño só fazem crescer de reputação, e outro a quem a posteridade multiplica elogios é W.G. Sebald. A obra-prima do escritor alemão morto em 2001 (de acidente de carro, antes de completar 57 anos), Austerlitz, acaba de sair no Brasil pela editora Companhia das Letras (em ótima tradução de José Marcos Macedo). O que admiro nele é a capacidade de mesclar o ensaio - num tom quase documental em algumas passagens, como se lêssemos um livro de história ou de estética - à ficção, sem parecer arbitrário ou inverossímil, pois cada frase e cada cena tem sua razão de ser e seu poder de sugestão.

O livro reconstitui, em discurso indireto livre, a história de Jacques Austerlitz em busca de sua origem. Ele é um estudioso da arquitetura que analisa a relação entre a ''mania de ordem'' e a ''tendência à monumentalidade'' com a cultura autoritária e discriminatória da Europa moderna, com a tentativa orgulhosa de fixar o futuro - assim como as fotografias, presentes em todos os quatro romances deixados por Sebald, falam sobre o desejo irrealizável de fixar o passado. Como Bernhard, Sebald reflete sobre as ruínas do nazi-fascismo, com a diferença de que no autor de Extinção há maior acidez contra a classe média cristã e seus salvadores da pátria. E vê, do caso Dreyfus no fim do século 19 à Biblioteca de Paris cem anos mais tarde, a sombra comum das ilusões perdidas do idealismo romântico, napoleônico.

Austerlitz é nome de batalha, de estação de trem - e as estações aparecem o tempo todo a lembrar como as coisas são transitórias, infixáveis - e também, como diz o livro, o sobrenome de Fred Astaire, o símbolo maior de leveza, do rigor sem monumento. O texto trata da ''indolência dos nossos olhos'', da maneira como o ser humano tende a querer classificar e controlar tudo, em fantasias, abstrações, sistemas fechados à luz do dia como a fortaleza que Austerlitz visita na Bélgica. Referências à biologia se misturam com citações de Rembrandt, Manet, Schumann; e os nomes em A remetem à busca do personagem por conhecer sua primeira infância, de judeu checo deportado para a Inglaterra. ''A fronteira entre a vida e a morte é mais permeável do que se costuma supor'', diz Austerlitz, em sua peregrinação por si mesmo.

POR QUE NÃO ME UFANO

Não vi ninguém contestar a inclusão da pergunta sobre a hipótese de um terceiro mandato de Lula numa pesquisa de opinião. O que a justifica? É eticamente correto levantar uma opção que não está posta nem pelas ruas nem por instituições? Se o tema está um pouco em pauta, é por iniciativa de alguns políticos interessados em fazer uso da popularidade do presidente, não por uma manifestação espontânea da sociedade. Transformar uma hipótese em fato me parece um salto duvidoso.

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