Entrevista:O Estado inteligente

domingo, maio 18, 2008

Daniel Piza

Ensaio sobre a miopia


Estou entre os que volta e meia se queixam da falta de visão de médio e longo prazo no Brasil, do olhar oportunista e imediatista de nossa "zelite" - na qual se inclui antes de mais nada o governo - e de toda a sociedade. Mas toda vez que o poder público se mete a tomar medidas nessa direção o arrependimento bate, até porque atrás da maioria delas o que existe é o interesse de curto prazo de algum grupo. Em se tratando do atual governo, onde há tantos nostálgicos do "desenvolvimentismo", a começar pelo próprio presidente e seus elogios a Médici e Geisel, a vontade é pedir: sejam míopes, por favor; tratem dos problemas que estão debaixo de seus narizes; "menos é mais".

A conjuntura, é verdade, pediria o contrário. Questões como a da Amazônia e o aquecimento global, a descoberta dos novos campos de petróleo, a melhora do ritmo de crescimento da economia em relação aos últimos 20 anos - tudo isso exige uma capacidade de tomar agora decisões que sejam frutíferas adiante. No entanto, uma ou duas semanas recentes de notícias bastam para que se perceba quanto há de erros e absurdos. A falta de foco é incrível, mesmo que jornais importantes como o Financial Times digam que "o gigante está despertando". (É um dos maiores clichês jornalísticos: vai-se a um país grande em crescimento, como China e Índia, e se retorna com o título "O gigante desperta".)

O episódio da demissão de Marina Silva, que é por princípio - e não caso a caso - contra alimentos transgênicos, grandes obras de infra-estrutura e expansão do agronegócio, de acordo com seus preconceitos religiosos e ideológicos, é exemplar. Ela saiu porque destoa ainda mais do restante do governo neste segundo mandato em que Dilma Rousseff, a "mãe do PAC", e Mangabeira Unger, o "visionário dos trópicos", ganharam força. Isso significa que Marina só estava onde estava por uma questão simbólica. Com o aposentado Carlos Minc, o governo diz ter um ministro ágil na liberação de licenças ambientais, mas seguramente sem a mesma força. Na realidade, Lula e companhia não fazem a menor idéia do que querem da Amazônia.

O presidente adora a retórica do "Brasil grande" (de vez em quando cai até no "ame-o ou deixe-o"), mas seu governo pensa pequeno o tempo todo. Veja o resultado ministério a ministério. Na saúde, pouco fez para melhorar a situação dantesca dos hospitais federais. Na educação, investiu na política de cotas e no ProUni (que faz a alegria das faculdades particulares). Curiosamente, os dois melhores ministros do momento são dessas áreas, Fernando Haddad e José Gomes Temporão, que ao menos falam coisas sensatas e novas; mas parece que chegaram tarde e decidem pouco. Na Justiça, depois de Thomaz Bastos atuar como advogado de defesa dos mensaleiros, Tarso Genro atua como um coadjuvante bigodudo. Guido Mantega, da Fazenda, se limita a declarações que o mercado nem perde tempo de levar a sério. E assim por diante.

Na semana passada, para tentar mais uma vez mudar a imagem de uma política econômica que apenas seguiu (e aprimorou em alguns pontos) a do governo anterior, divulgou-se um pacote de política industrial. Só esta expressão, "pacote de política industrial", já diz tudo. A mera idéia subjacente - de que o Estado é um condutor da economia - é retrógrada. Sem redução ampla da carga tributária, dos custos trabalhistas e dos gastos públicos, não se vai além de benefícios setoriais. Isso para não falar, mein Kafka!, na burocracia, que quase fez o neurocientista Miguel Nicolelis desistir de criar seu instituto de pesquisa e ensino em Natal. E sem o investimento em infra-estrutura, que o governo levou quase um mandato e meio para começar, o PIB de 5% será antes um teto do que um patamar. Repito: quase todos os sistemas, como o viário, o aéreo (quem disse que a crise passou?) e o energético, beiram o colapso.

Outros sinais de que os pseudodesenvolvimentistas estão à solta, enquanto os monetaristas seguem mantendo o Brasil com a maior taxa de juros do planeta - uma dicotomia também herdada do "modus" tucano -, são as iniciativas de reestatização ou de retomada da máquina pública. Quase caí para trás outro dia quando li um desses sujeitos defendendo a fusão da Brasil Telecom pelo argumento de que a telefonia é "um setor estratégico"... Nem mesmo um setor realmente estratégico, como o petróleo, pode viver hoje sem exploração multinacional, ainda que a Petrobrás continue tão inchada.

Sem educação nem produtividade, não há planejamento. Cada vez vejo mais pessoas qualificadas sem emprego, e a "ascensão da classe C" tão celebrada pela imprensa não esconde o fato de que ela aumentou também porque muita gente desceu da B - ou seja, da classe média propriamente dita, sustentáculo de todas as economias capitalistas avançadas. Talvez fosse melhor o poder público fazer sua parte cotidiana, como a fiscalização de corrupções como a dessa escandalosa apropriação das verbas "keynesianas"; e a simples execução do orçamento já seria um salto de qualidade. Mas os bons governos, sem ironia, são os que cuidam das urgências e ao mesmo tempo pensam longe. O drama brasileiro tem sido a confusão entre essas duas esferas: ou se abandona o futuro ou se delira sobre ele. Daí se transmite o legado de nossa miséria.

UMA LÁGRIMA

Para Robert Rauschenberg, grande artista americano, no mesmo clube onde estão Edward Hopper, Jackson Pollock e poucos mais. Foi divertido ler nos obituários brasileiros que ele "fugia da representação" e "rompeu com a superfície da tela". Bem, ninguém usou mais do que ele na arte contemporânea as figuras e os ícones - tão explícitos como a foto de John Kennedy ou uma águia empalhada a simbolizar as contradições da América - e ele jamais abandonou a pintura, inclusive em seus grandes e belos cenários para espetáculos de dança. O que fez foi incorporar ao realismo os procedimentos do expressionismo abstrato, da pop art e das instalações. Não era nenhum Picasso, mas foi grande.

DE LA MUSIQUE

Além dos poucos mas bons CDs de música "erudita", a temporada de concertos começou e muito bem. Na quinta retrasada Nelson Freire estava em grande noite, especialmente em Beethoven, de quem tocou a sonata nº 31 com uma intensidade nos contrastes que normalmente sua técnica de modulações não atingia. Ontem à noite eu iria ver a montagem de Felipe Hirsch para O Castelo do Barba-Azul, de Bela Bartók. E na semana que se inicia teremos Daniel Barenboim e uma série de outras apresentações que deverão dar a 2008 um circuito na memória.

A FÉ E O TOM

Para quem ainda se recusava a ver Albert Einstein como um agnóstico, a frase da carta de 1954 a um amigo, revelada há alguns dias, é cabal: "A palavra Deus é para mim nada mais do que expressão e produto da fraqueza humana."

MINICONTO

Telefonou para o ex-marido. A empregada atendeu e, ao responder, sem querer trocou singular por plural: "Eles estão no banho." A ficha caiu, e a ex-mulher não deixou recado.

POR QUE NÃO ME UFANO

Num país onde todos os clássicos do marxismo e do estruturalismo francês estão disponíveis, é para saudar que a editora Topbooks siga publicando a coleção Liberty Classics, que já editou obras de David Hume, Michael Oakeshott, Hugh Trevor-Roper e outros. Em Princípios de Política Aplicáveis a Todos os Governos (tradução de Joubert de Oliveira Brízida), Benjamin Constant, opositor de Napoleão, mostra o que há de mais fundamental nas idéias liberais: a reação ao despotismo. Como no Brasil o liberalismo é associado ao conceito de "direita", enquanto a intitulada "esquerda" adora repetir palavras como "soberania", sua leitura não poderia ser mais bem-vinda. E ele não é culpado por ter inspirado o Poder Moderador de Dom Pedro II, que confundiu consenso institucional com conchavo partidário.

A História das Origens do Governo Representativo na Europa, de François Guizot (tradução de Vera Lúcia Joscelyne), faz bom "pendant" com Constant. Admirador, como Joaquim Nabuco e Machado de Assis, da monarquia constitucional inglesa, ele pôs ênfase na importância da sociedade civil, argumentando que ao Estado caberia antes de tudo garantir sua dinâmica. Era contra o conservadorismo que quer enjaular as liberdades individuais e contra o jacobinismo que sonha inaugurar artificialmente outra sociedade. Mais uma vez, merece leitura num país onde opinião é falta de humildade e lucro é pecado capital.

INTÉ

Tiro três semanas de férias. Sinopse volta no dia 15/6.

Arquivo do blog