Entrevista:O Estado inteligente

domingo, maio 11, 2008

Daniel Piza As ilusões vencidas

Se 1968 não terminou, é porque virou efeméride. Basta chegar uma data redonda e as comemorações e os balanços aparecem na mídia, depois desaparecem até nova data redonda. É diferente de um autor que é celebrado porque continua lido e influente ou de outro que é lembrado porque não merece ser esquecido. Entre um festejo e outro, 1968 simplesmente tem muito pouco a dizer. Não é, para voltarmos a datas, como 1922, o ano em que tantas obras-primas mudaram as idéias e as vidas. Eu mesmo, na efeméride de dez anos atrás, escrevi sobre a ingenuidade de slogans como ''a imaginação no poder'' e o desaparecimento do discurso ''engajado''. E classifiquei o ano como símbolo de uma etapa da liberação comportamental que vinha justamente desde o modernismo.

Neste último sentido, estou com Daniel Cohn-Bendit, ''Danny, le rouge'', que 1968 ''venceu'' - a juventude universitária segue movida a sexo, drogas, rock''n roll e ecologia - e, como tal, passou. Felizmente, os pais já não fingem que os filhos não transam e ninguém se sente obrigado a ficar pelo ''resto da vida'' (expressão sintomática) com quem já não ama. Mas essas conquistas vão muito além do ocorrido naquelas ruas de Paris em maio, quando Sartre e Godard pareciam semideuses capazes de romper com caretices como o capitalismo e a narrativa. Havia ali esse discurso político que, como a atualidade demonstra, não poderia ser mais equivocado, pois 1968 terminou em 1989. E os ídolos já não são os mesmos, felizes com suas indenizações altíssimas por terem perdido empregos sob a ditadura, enquanto os que perderam vidas ganham bem menos.

No novo livro de Zuenir Ventura, 1968 - O Que Fizemos de Nós, publicado agora pela Planeta em caixa com reedição de 1968 - O Ano Que Não Terminou, é curioso ver a reação dos entrevistados como Caetano Veloso e Fernando Henrique Cardoso na segunda parte. Caetano fala dos avanços na sexualidade, mas diz que a herança ruim foi a ''volta da religião''. Bem, não sei se dá para atribuir essa volta a 1968, apesar das bobagens ''odaras'' da época... FHC diz que o principal é a idéia da utopia, mas do que chama de ''utopia viável'', usando ''de propósito'' (sic) uma contradição em termos. Os outros entrevistados, como José Dirceu, Franklin Martins e César Benjamin, dispensam comentários. Para todos, 1968 virou um mantra simbólico, uma (argh) ''mensagem de esperança'', um número estampado numa camiseta como a cara de Che - algo, portanto, bem distante do que foi a realidade, do mesmo modo que os slogans nos muros franceses.

Sim, quando vejo Nicolas Sarkozy dizendo que Maio de 1968 acabou com ''valores sociais e patrióticos'', voilà!, volto a ter grande simpatia pelo movimento erótico-político de tantas décadas atrás... Mas aí cairia no mesmo erro que venho criticando: 1968 virou um rótulo, a colar no que acharmos conveniente, ou uma pílula para nos livrar de dores de cabeça. Se ele foi um momento desse processo que vejo como positivo na abertura dos costumes, sou obrigado no instante seguinte a lembrar que ele também ajudou a reforçar o consumismo - cuja base, ironicamente, é o ''faça o que você quiser'' presente em dez entre dez propagandas de TV, de tênis a carros - e a idolatria hoje vigentes, que na verdade são carregadas de um moralismo pré-moderno, baseado no julgamento de aparências em prejuízo das inteligências.

É só aqui que vejo sentido em continuar falando de 1968, esse ''cadáver do qual todos querem tirar um pedaço'', na frase de André Glucksmann. Como escrevi outro dia, ao tratar do caso Isabella, o ser humano ainda está aprendendo a ser mais tolerante e menos possessivo em suas relações afetivas; isso não é algo que ele sabia e agora esqueceu. O que não dá para aceitar é essa pose dos sexagenários de que sua geração era ''inconformista'', ao passo que a mais nova é cínica, e de que viveram uma ''época de ouro'', enquanto hoje se vive um mundo sem ideais. Mentira. A minoria que participou de tais movimentos era conformista à sua maneira, com ilusões como ''socialismo democrático'' e ''sociedade alternativa'', e agora vive nessa ladainha entre o desencanto e a nostalgia. Basta ver o que fizeram de si mesmos.

DE LA MUSIQUE

Faz tempo que não falo de CDs, então hoje vou compensar. O novo de Brad Mehldau, o Bill Evans da atualidade, é muito bom e mais uma vez traz sua mistura de repertório de jazz e pop. Brad Mehldau Trio Live tem uma canção de Noel Gallagher, da banda Oasis, chamada Wonderwall, e tem uma versão de O Que Será, de Chico Buarque (de quem Mehldau também já tocou ao vivo Samba e Amor), que dura mais de 10 minutos, em muitos dos quais você quase deixa de reconhecer a melodia. Na verdade são dois CDs e, se o primeiro traz o standard The Very Thought of You, o segundo traz uma música de Coltrane, Countdown, como uma cascata de improvisos, como se o trio estivesse inspirado pelo ambiente do Village Vanguard. Brilhante.

Demonstrando o prestígio da música brasileira, se é que isso ainda é necessário, ela está representada também no CD de Stacey Kent, Breakfast on the Morning Tram, com O Samba da Bênção, de Vinicius de Moraes, rebatizado de Samba Saravah. Kent lembra o estilo de Madeleine Peyroux, mas para mim sem as ousadias técnicas dela. E, por falar em Bill Evans e música brasileira, no CD Something for You a pianista e cantora Eliane Elias homenageia Evans de forma muito bonita. Eliane é desses musicistas brasileiros que a platéia sofisticada internacional cultua, mas o Brasil ignora.

Mas o acontecimento é The Art of Christa Ludwig, uma caixinha de EMI com cinco CDs da extraordinária mezzo-soprano alemã. Ela canta ''lieder'' de Brahms, Mahler, Schumann, Schubert; árias de Verdi, Mozart, da Rosenkavalier de Richard Strauss (em quem só pode ser comparada com Elisabeth Schwarzkopf). Outro destaque é o ''Liebestod'', o canto de morte de Isolda, sob regência de Otto Klemperer. Ela foi uma extraordinária Brang?ne da ópera de Wagner e esse é seu raro registro como Isolda, papel para sopranos. Escute o que ela faz; eu não tenho como descrever.

RODAPÉ

Estou acompanhando com muito interesse a controvérsia sobre o verdadeiro papel da Missão Francesa e de um de seus artistas, Nicolas-Antoine Taunay. Como a história brasileira ainda tem mitos a desfazer! Em O Sol do Brasil (Companhia das Letras), Lilia Moritz Schwarcz afirma que a missão não foi exatamente uma ''missão'', o convite de dom João a um grupo de artistas europeus que teria vindo para registrar e civilizar os trópicos. Taunay praticamente se autoconvidou e, sujeito classicista e melancólico, jamais captou a luz tropical, que dizia ''exagerada''. No catálogo ''raisonné'' Taunay e o Brasil (editora Capivara), Pedro Corrêa do Lago conta como ele se indispôs com a família real, mas acha que foi convidado, sim, e que sua pintura, indefinida como é, tem alguma originalidade.

Bem, eu acho que não se pode cobrar realismo pleno de um artista como ele, mas que a combinação de formas pomposas com paisagem idealizada - de David com Alencar - se aproxima do kitsch, apesar da técnica. Paradoxalmente, suas telas têm mais valor histórico do que estético.

POR QUE NÃO ME UFANO

Se você quiser um exemplo de como a geração 68 não é a mesma, olhe para o presidente Lula. Ou melhor, escute. Ele disse que a obtenção do grau de investimento para o Brasil (por apenas uma das agências, a Standard & Poors) foi um ''atestado'' de que é um país sério. Como assim, é preciso que uma trupe de financistas estrangeiros venha determinar a seriedade do Brasil? Enquanto isso, o Brasil contradizia tal seriedade aos borbotões: o fazendeiro acusado de encomendar o assassinato de Dorothy Stang foi absolvido; a ministra Dilma Rousseff mudou de idéia ao declarar que vazar dados sigilosos de ex-presidentes não é crime; a inflação medida pela FGV bateu nos 10%, etc.

Lula também está cada vez mais reacionário, para usar o adjetivo que os engajados gostavam de usar. Para ficar num só exemplo, ele voltou a elogiar os presidentes do regime militar, exaltando Geisel e Médici pela obra de Itaipu e livrando a barra de seu autoritarismo como ''uma ou duas ações erradas''. As quais, por sinal, lhe proporcionam um salário até hoje.

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