Entrevista:O Estado inteligente

domingo, maio 18, 2008

A complexidade da agenda internacional

Celso Lafer

Entender a “grande máquina do mundo” para saber como se conduzir no plano internacional é o objeto das relações internacionais e um indispensável ingrediente na avaliação das possibilidades e riscos da política externa de um país. Vislumbrar o funcionamento desta “grande máquina” - de que metaforicamente fala Camões no último canto de Os Lusíadas - é, no entanto, na prática, muito difícil, dada a complexidade da realidade internacional. Esta complexidade se intensificou por conta das interdependências trazidas pelas revoluções intelectual, técnica e econômica que, no século 20, unificaram a humanidade para o bem e para o mal e se aprofundou por obra da globalização, que internalizou o mundo na vida dos países.

Apesar das dificuldades, cabe buscar a compreensão desta complexidade que possibilita a análise do horizonte da convivência coletiva em escala planetária e ilumina o espaço dentro do qual se movem as políticas externas dos países.

Para o trato organizado da complexidade Andrew Hurrell, em livro recente sobre a ordem mundial, oferece um útil mapa de conhecimento ao desagregar os temas da agenda internacional em cinco grandes blocos. Vou valer-me, com liberdade, das suas considerações, consciente das mútuas implicações que permeiam esses temas.

O primeiro bloco diz respeito à intensidade atual das políticas de identidade e de reconhecimento que vêm levando a uma nova leva de nacionalismos. Isto impacta a estabilidade do tradicional sistema internacional interestatal e da sua ordem, em função da abrangência dos conflitos e ambigüidades que circundam a latitude do princípio de autodeterminação dos povos. Disso são exemplos a desagregação da União Soviética e da Iugoslávia e suas conseqüências, o problema dos curdos no Oriente Médio, as aspirações dos bascos na Espanha, os anseios de autonomia do Tibete em relação à China. Os problemas que integram este bloco da agenda internacional exprimem tendências centrífugas que estão presentes na vida internacional. Provêm do que Octavio Paz denominou a “sublevação dos particularismos”.

O segundo bloco envolve os problemas derivados da crescente ambição normativa presente na sociedade internacional. São exemplos dessa ambição os inúmeros tratados sobre direitos humanos e a importância atribuída à democracia na pauta internacional. Estas normas, no entanto, freqüentemente esbarram nas seletividades da política do poder, num descompasso que também tem a sua raiz na heterogeneidade de valores existentes no sistema internacional. Daí, tensões difusas, agravadas pela atual exacerbação da xenofobia, dos conflitos étnicos e dos fundamentalismos. Estas tensões obstaculizam a afirmação compartilhada de uma normativa razão abrangente da humanidade, que hoje expressa o que Michael Walzer qualificou de “thin morality”, ainda não enraizada planetariamente. Darfur e Mianmar ilustram esta avaliação.

O terceiro bloco provém das especificidades dos problemas da guerra e da violência no mundo pós-guerra fria. Permanece vigente o clássico tema da situação-limite guerra/paz e dos seus riscos para os Estados e suas populações, intensificados pelo temor das armas de destruição em massa. A isto se soma o alcance do papel da violência da ação de atores não-estatais que o drama do Líbano e os dilemas da Colômbia ilustram. A problemática da violência, hoje, tem alcance transnacional. Abrange, além da violência do terrorismo, a da criminalidade organizada em redes, a comunitária, a sancionada ou inspirada por motivos religiosos. Tudo isso aponta para a importância crescente de uma gestão internacional de segurança coletiva. Esta, no entanto, é precária, pois, sendo a guerra, como diz Raymond Aron, um camaleão que assume sempre novas formas, não existe uma visão planetariamente compartilhada sobre que tipos de ameaça à paz põem em questão os interesses de todos os Estados - base necessária do conceito da segurança coletiva.

O quarto bloco está vinculado ao desafio da gestão de uma economia globalizada num mundo caracterizado pela desigualdade. É significativa a assimetria do impacto que a globalização econômica vem tendo na vida dos países. Favoreceu a China e a Índia. Agravou as vulnerabilidades de boa parte dos países da África. Ensejou a contestação da legitimidade das instituições internacionais que têm um papel na gestão das interdependências econômicas. Entre elas o FMI e a OMC. Daí o significado do movimento antiglobalização de que Hugo Chávez, da Venezuela, é um arauto - e o MST encarna -, que reúne coligações de geometria variável de organizações não-governamentais e explica, também, o ímpeto de tendências protecionistas nos países desenvolvidos.

O quinto bloco diz respeito ao desafio ecológico. Este tem como característica, de um lado, a inequívoca verificação de que os temas ambientais são temas globais e afetam a todos, como é o caso do clima, e, de outro, que a cooperação necessária para lidar com temas globais deste tipo é intrusiva e limitativa da soberania. Este é um bloco que envolve questões éticas e tecnológicas, atuação de organizações não-governamentais e conflitos de interesses que provêm das diferenças entre os Estados do impacto que os problemas ambientais acarretam. Os dilemas da negociação de um regime internacional de mudança climática ilustram o problema.

Do deslinde do conjunto desta pauta depende a equação de uma ordem mundial que não ameace a sobrevivência da própria humanidade. Isto passa por três desafios diplomáticos, apontados por Hurrell em seu livro, que são: 1) Como captar interesses comuns e compartilháveis; 2) como gerir as desigualdades do poder; e 3) como mediar o conflito de valores e a diversidade cultural.

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