Entrevista:O Estado inteligente

sábado, maio 03, 2008

Barriga de aluguel

Gravidez a soldo

A barriga de aluguel tornou-se um negócio
bem rentável no Brasil, apesar de proibido


Adriana Dias Lopes

Anúncios de barriga de aluguel divulgados na internet

O nascimento da inglesa Louise Brown, o primeiro bebê de proveta, em julho de 1978, representou, além de um enorme avanço científico, a abertura de um mercado fabuloso para a fertilização in vitro. O método consiste na fecundação do óvulo em laboratório e na transferência do embrião para o útero. No início dos anos 80, a chance de uma gravidez iniciada artificialmente vingar era de apenas 5%. Hoje, é oito vezes maior. O sucesso dos tratamentos produziu uma extensão polêmica de reprodução assistida – a barriga de aluguel, em que uma mulher, incapaz de gestar o embrião gerado em proveta, recorre ao útero de outra. No Brasil, o aluguel de uma barriga é permitido somente em "caráter solidário". Ou seja, entre mulheres com algum vínculo afetivo e sem a presença de dinheiro. Assim determinam as normas dos conselhos regionais de medicina. Na prática, porém, a história é outra. Dos 170 centros brasileiros de medicina reprodutiva, 10% oferecem a suas clientes um cadastro de mulheres dispostas a locar seu útero – e receber por isso. Uma única clínica de São Paulo, só no ano passado, intermediou doze transações do gênero. As incubadoras humanas também podem ser facilmente encontradas na internet, em sites gratuitos de classificados. "Por motivos financeiros, estou disposta a alugar minha barriga para pessoas que queiram ter filhos e não podem", anuncia uma dona-de-casa do interior de São Paulo. Nove meses de aluguel de uma barriga saem, em média, por 40 000 reais, mas há casos em que esse valor chega a 100 000 reais.

Com uma renda familiar de 1 000 reais e três filhos, a dona-de-casa N.J., de 35 anos, ambiciona comprar uma casa. Depois de ler uma reportagem sobre medicina reprodutiva, ela decidiu alugar sua barriga. Pela internet, entrou em contato com um centro de fertilização no Rio de Janeiro e foi incluída no cadastro da clínica. Depois de um ano de espera, o negócio foi fechado com um casal europeu, por 100 000 reais. A "locatária" tem 36 anos, mas não consegue engravidar por causa de miomas uterinos. Já perdeu três bebês. "Meu ginecologista me sugeriu a barriga de aluguel. Como em meu país a prática é proibida e domino bem o português, pensei imediatamente no Brasil", diz. Em março, N.J. viajou para o Rio, em companhia do filho caçula, de 9 anos, para se submeter ao procedimento. A gravidez não vingou. A próxima tentativa será no fim de maio.

A prática da barriga de aluguel envolve questões delicadíssimas – tanto para a gestante quanto para a mãe biológica. De um lado, está uma mulher que passa por todas as transformações físicas e psíquicas ocasionadas pela gravidez de uma criança que não é e nunca será sua. "Por mais que digam que se trata apenas de uma transação comercial, é impossível uma mulher não ser afetada emocionalmente pela gestação", diz a terapeuta Magdalena Ramos, professora do Núcleo de Casal e Família da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. "Costumo dizer que o nascimento do bebê sempre representa um aborto psicológico para a mãe de aluguel." Do outro lado, está uma mulher que tem de recorrer ao útero de outra para realizar pela metade o sonho da maternidade. "Quero esquecer que meu filho se formou dentro de outra mulher", diz a mineira J.D., de 46 anos. Depois de passar por três abortos espontâneos, ela decidiu alugar o útero de uma carioca de 30 anos por 40 000 reais. Apesar de morar em outro estado, durante toda a gravidez J.D. visitava semanalmente a gestante de seu filho. Fez todos os desejos da grávida, sussurrou músicas de ninar com o rosto encostado no ventre da outra e sentiu – com as mãos – os movimentos de seu bebê dentro da barriga de aluguel. A criança de J.D. nasceu há um mês.

Na opinião de boa parte dos especialistas, a convivência entre a mãe biológica e a de aluguel não é salutar. "Certa vez, um casal insistiu muito para conhecer a mãe de aluguel", conta o médico responsável por uma das maiores clínicas de fertilização do estado de São Paulo. "Acabei cedendo e fiz as apresentações. Não poderia ter acontecido nada pior." A grávida passou a chantagear os pais biológicos. Se eles não lhe dessem mais dinheiro, ela não entregaria o bebê. Depois do nascimento da criança, a situação fica mais complicada para quem cedeu o útero. Ainda que tenham encarado a gravidez com a frieza de quem fecha um negócio, as mães de aluguel costumam ser tomadas por um sentimento de abandono. É natural: durante a gestação, elas são o centro das atenções. Como gestam o filho de outra mulher, recebem cuidados ainda mais extremos. Com o parto, de uma hora para outra tudo isso desaparece, deixando uma grande sensação de vazio. Sem contato com a mãe biológica e o filho que não é seu, a recuperação psicológica torna-se mais fácil.

A legislação sobre barriga de aluguel varia de país para país. O procedimento só pode ser remunerado em alguns estados americanos, como a Califórnia e a Flórida, e na Índia. Desde 2002, quando a prática foi legalizada pelas autoridades do país, as mulheres indianas vêm sendo muito procuradas por casais de estrangeiros. O motivo é o baixo preço do aluguel de sua barriga – 7 000 dólares, em média. O negócio assumiu tal proporção que se fala, inclusive, em "turismo da medicina reprodutiva". Nos Estados Unidos, a oferta de mães de aluguel também tem crescido, sobretudo depois da invasão do Iraque, em 2003. Só no ano passado foram realizadas 1 000 fertilizações envolvendo mães de aluguel. Em 2006, esse número ficou em 260. Mulheres de militares em missão no Iraque têm encontrado na barriga de aluguel uma forma de incrementar o orçamento doméstico enquanto o marido está em combate. Entre as americanas, o valor da barriga de aluguel gira em torno de 25 000 dólares.

Nem sempre a relação entre a mãe de aluguel e a biológica é permeada pelo dinheiro. Em 2003, a consultora de vendas paulistana Sarita Lopez Vidal, então com 39 anos, ofereceu seu útero para a cunhada Sandra. Aos 35 anos, em 2001, Sandra teve de ser submetida a uma histerectomia por causa de miomas múltiplos. Quando seu desejo de ser mãe bateu, a cunhada se dispôs a realizá-lo. Mãe de dois meninos e divorciada, ela conta que, durante a gravidez, conseguiu não estabelecer nenhum laço maternal com o sobrinho. "Só não me arrisquei a amamentá-lo", diz Sarita. "Tive medo de criar um vínculo mais forte com ele." Hoje, Ramon, de 3 anos, sabe que é filho da mamãe, mas saiu da barriga da titia.

Nelio Rodrigues

O sonho da maternidade
"O maior desejo meu e de meu marido sempre foi um filho. Durante dez anos, tentei engravidar, mas sofri três abortos. Foi meu ginecologista que me falou sobre a barriga de aluguel. Aceitei na hora. Era a única possibilidade de termos uma criança com nossas características genéticas. Aliás, o bebê é a cara do meu marido. A gravidez foi muito tranqüila. A menina que serviu de barriga de aluguel foi muito honesta. Ela se cuidou durante todo o tempo, pensou na saúde do meu filho – e apenas isso. Eu era a mãe e exerci esse papel durante toda a gravidez. Era eu que agradava a barriga, conversava com o bebê, cantava para ele... Com meu marido foi diferente. Ele não quis conhecer a moça. Na hora do parto, eu estava lá e o meu filho veio diretamente para os meus braços. Foi uma sensação indescritível. A moça, por sua vez, não quis ver a criança. Ela virou o rosto para o outro lado. Depois disso, nunca mais nos vimos."
J.D., 46 anos, com o filho de 1 mês

Amamentar, não
"Não pensei duas vezes em oferecer meu útero para a mulher do meu irmão, minha cunhada Sandra. Eu já era mãe de dois meninos e estava separada. Foi fácil porque estava convicta do que iria fazer. Fiz apenas um pedido a Sandra. Não amamentaria o bebê para não criar um vínculo afetivo mais forte com ele. Hoje, minha relação com Ramon é exatamente igual à que tenho com meus outros onze sobrinhos".
Sarita Lopez Vidal, 44 anos, à esquerda, com o sobrinho Ramon e Sandra

Nelio Rodrigues

Nelio Rodrigues

Tudo pela casa própria
"O salário do meu marido não passa de 1 000 reais. Temos três filhos para criar e moramos de aluguel. A vida não é fácil. Decidi ser barriga de aluguel sobretudo para comprar uma casa. Minha família imediatamente concordou. Fui indicada a um casal europeu por uma clínica de fertilização. Já conheci a mãe biológica e ela é gentil e muito carinhosa comigo. Fico impressionada com quanto ela deseja essa criança. Em nenhum momento questionou os 100 000 reais que cobrei. Já fizemos a primeira tentativa de fertilização, mas não deu certo. Em duas semanas, tentaremos de novo. Muita gente pode me achar uma mercenária, mas não devo satisfações a ninguém – só para meus filhos e meu marido. Expliquei direitinho para todos em casa, e lá está tudo bem. Se depois do parto me perguntarem o que aconteceu com o bebê, direi que perdi a criança."
N.J., 35 anos, com o filho caçula, de 9 anos


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