Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, maio 21, 2008

AUGUSTO NUNES- O chapéu de palha na cabeça do faraó




Jornal do Brasil
21/5/2008

Nada a ver com essa cara de faraó, , pensei enquanto olhava de soslaio o chapéu de palha que Ulysses Guimarães, à minha esquerda no banco traseiro do Opala, usava desde o fim da tarde daquele sábado de setembro. Ganhara o chapéu em Itaquaquecetuba, procissão de vogais e consoantes na Grande São Paulo que hospedara o quinto comício do dia. Cinco horas e dois palanques depois, o presente do eleitor anônimo continuava na cabeça do deputado que comandava o PMDB na campanha eleitoral de 1976. Achei que esquecera o chapéu.

– Presente de eleitor é coisa séria, e deste gostei muito – surpreendeu-me o aparte mediúnico da voz grave e rouca.

Como é que ele adivinhara o que eu estava pensando?, espantei-me. Uma mirada furtiva confirmou que mantinha os olhos fechados. Falou dormindo, tranqüilizei-me.

– Não estou dormindo – assustou-me de novo. – Estou pensando numa coisa que sempre me incomodou.

O que seria?, intriguei-me, já contemplando a escuridão pela janela à direita. Devia ser mais complicado ler pensamentos pelas costas. Não era. Pelo menos para uma figura que fazia coisas de que até Deus duvida. Nascido no interior de São Paulo, fora cartola do Santos ("Antes do Pelé", ressalvava). Aos 60 anos, cumpria o 7º mandato na Câmara dos Deputados (e seria reeleito outras quatro vezes). A princípio simpático ao golpe de 1964, desafiou a ditadura em 1973 como anticandidato da oposição à Presidência. Quem faz isso consegue até ler pensamento.

Ulysses abriu os olhos escandalosamente azuis, acomodou no banco desconfortável o corpo longo e magro e, quase sussurrando, começou a responder à pergunta que nem chegara a fazer-lhe.

– O problema do político é a mulher do político – cortou o silêncio a voz inconfundível de tenor de cabaré. – O sujeito entra em casa no escuro, tira o sapato para não fazer barulho mas não adianta: acaba ouvindo uma mulher sonolenta querendo saber como foi o dia. Ele conta que almoçou com fulano ou encontrou beltrano e lá vem algum comentário como "sei, aquele que você disse que é cafajeste", "sim, esse que vive dizendo que você não presta". Elas têm uma memória tremenda. Ninguém escapa, do vereador de vilarejo ao presidente da República.

Fim da lição, informou o arriamento das pálpebras grossas. Era difícil imaginar Mora Guimarães, muito risonha e pouco falante, protagonizando cobranças noturnas. Mais difícil ainda era imaginar no banco dos réus desse tribunal doméstico um homem decente como Ulysses. Embora assumidamente apaixonado pelo poder ("Não existe nada mais afrodisíaco", resumia), jamais vendera a alma para consegui-lo. Fora sempre um homem honrado. E continuaria a sê-lo até 12 de outubro de 1992, quando desapareceu no mar depois da queda do helicóptero em que viajava com Mora e os amigos Severo e Henriqueta Gomes.

Depois daquele sábado, nunca mais deixei de acompanhar de perto a trajetória do líder da resistência democrática. Reencontrei-o no comando da campanha pela anistia, na chefia da campanha das Diretas Já, ou presidindo simultaneamente o PMDB, a Câmara dos Deputados e a Assembléia Constituinte. Não notei nenhuma mudança.

O país é que mudou bastante. Como os políticos da linhagem a que Ulysses pertenceu, são coisa do século passado mulheres preocupadas com valores éticos ou morais. No Brasil do século 21, quem se casa com um pai da pátria descobre no altar que só é pecado perder a eleição e o poder. O resto pode, até vender a mãe a preço de custo. Vira cúmplice do marido, e cúmplices não fazem perguntas constrangedoras.

A mulher do deputado Paulinho da Força, por exemplo, pergunta se a verba para a ONG já foi aprovada. A mulher do governador Cid Gomes pergunta se pode embarcar a mãe no jatinho. A primeira-dama pergunta pela próxima viagem. E todas dormem o sono dos sem-culpa, porque o remorso foi demitido pela Era da Impunidade.

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