Entrevista:O Estado inteligente

sábado, junho 09, 2007

Obras revelam o braço autocrático de Putin

A pátria dos conspiradores

Obras de dissidentes revelam como Putin e as agências
de espionagem sufocam a democracia russa


Jerônimo Teixeira

Reuters
Litvinenko, no leito de morte: ele acusou Putin de ser o mandante de seu envenenamento


VEJA TAMBÉM
Exclusivo on-line
Trechos dos livros

Morte de Um Dissidente
A Explosão da Rússia
Um Diário Russo

Quando o ex-agente dos serviços de informação russos Alexander Litvinenko desembarcou em Londres com a mulher e o filho, em novembro de 2000, o funcionário da imigração do Aeroporto de Heathrow estranhou seu pedido de asilo político. "A Rússia, até onde eu sei, tem um governo democrático", disse. Seis anos depois, Litvinenko morria em um hospital de Londres, em um estranho caso de envenenamento com polônio 210, substância radioativa de difícil detecção. Deixou uma carta em que apontava Vladimir Putin, presidente da Rússia, como o mandante do assassinato. Dois livros sobre o caso estão chegando às livrarias brasileiras. Morte de um Dissidente (tradução de Berilo Vargas e Celso Mauro Paciornik; Companhia das Letras; 477 páginas; 47,50 reais), de Alex Goldfarb e Marina Litvinenko, um amigo e a viúva do agente envenenado, trata da ascensão de Putin ao poder e do crescente poder da FSB – um dos órgãos que substituíram a antiga KGB, o serviço secreto soviético. A Explosão da Rússia (tradução de Clóvis Marques; Record; 294 páginas; 44 reais – nas livrarias a partir do dia 29), escrito pelo próprio Litvinenko em parceria com o historiador Yuri Felshtinski, acusa a FSB de promover atentados para atribuí-los ao terrorismo checheno. Um terceiro livro, Um Diário Russo (tradução de Nivaldo Montigelli Jr.; Rocco; 360 páginas; 43 reais), de Anna Politkovskaia – jornalista assassinada a tiros, em Moscou, em 2006 –, traça um panorama sombrio da Rússia atual, submetida a uma política de violência e censura. Os assassinatos de Litvinenko e Anna seguem sem solução. Se o governo de Putin tem mesmo um dedo nesses casos, é ainda incerto. Mas as três obras permitem uma conclusão clara: embora o comunismo tenha acabado, a Rússia ainda está longe de ser uma democracia. Nas mãos centralizadoras de Putin – não por acaso, um ex-agente da KGB –, o governo está cada vez menos transparente e mais autoritário.

Para os que gostam de teorias da conspiração, esses livros são um prato cheio. A política russa, tal como descrita em Morte de um Dissidente e A Explosão da Rússia, parece ser conduzida, pura e exclusivamente, em uma sucessão de arranjos de bastidor. O segundo livro foi escrito em um ímpeto de denúncia, como um desafiante dedo em riste diante do Kremlin. Chegou a ser publicado no jornal liberal Novaia Gazeta (no qual trabalhava Anna Politkovskaia), mas depois foi proibido no país (embora continuasse a circular pela internet). A narrativa é às vezes intricada, tal a quantidade de agências governamentais, gangues criminosas e conspiradores envolvidos em conluios sinistros. No centro de todas essas tramas, aparece o problema da Chechênia. Província de maioria muçulmana no Cáucaso, a Chechênia tem ambições de independência desde o tempo dos czares. Quando a União Soviética foi extinta, em 1991, essas ambições separatistas se reacenderam. O presidente Boris Ieltsin não negociou a autonomia da região. Preferiu embarcar em duas desastrosas guerras, em 1994 e 1999, que deixaram o saldo de mais de 100.000 civis mortos.

Fanáticos chechenos comprovadamente praticaram dois ataques covardes à Rússia. Na invasão de um teatro em Moscou, em 2002, mais de uma centena de reféns morreu, e quase 200 crianças foram assassinadas por terroristas chechenos em uma escola em Beslan, em 2004 (se bem que, no primeiro caso, as mortes possam ser atribuídas à ação desastrosa das forças de segurança, que lançaram um gás paralisante dentro do teatro). A Explosão da Rússia trata de atentados anteriores, mas não apresenta provas definitivas de sua acusação central: as explosões que mataram centenas de pessoas em Moscou, Buinaksk e Volgodonsk, em 1999, não teriam sido obra dos chechenos, como então se propagou, mas foram planejadas pela FSB para radicalizar as diferenças com a Chechênia, conduzindo a uma nova guerra. Essa tese conspiratória soa delirante, elaborada demais para ser verdadeira. O problema é que a versão oficial é ainda menos convincente. Nunca se explicaram os episódios na cidade de Riazan, em 1999. Moradores de um prédio residencial viram três pessoas descarregando sacos no porão. Chamaram a polícia, que encontrou explosivos dentro de sacos de açúcar, com um detonador armado para destruir o edifício. A versão inicial apontava um atentado checheno frustrado, nos moldes dos ataques realizados pouco tempo antes em Moscou, Buinaksk e Volgodonsk. Mas logo se descobriu que um dos supostos terroristas havia ligado de Riazan para os escritórios da FSB em Moscou. O diretor da FSB, Nicolai Patrushev, imediatamente mudou a versão: os sacos continham açúcar, e não explosivos, e tudo não passou de um exercício de rotina conduzido pelas forças de segurança.

Ivan Shlmaov/AFP
Tanques russos na Chechênia: guerras desastrosas e violações dos direitos humanos

Açúcar ou explosivos, ataque malogrado ou exercício militar? Na Rússia, todas as versões parecem implausíveis. Mas é preciso ter em mente que o comunismo acabou há menos de vinte anos. O imenso aparato de informação e contra-informação estatal nunca foi desmontado. Em Morte de um Dissidente – livro construído em grande parte com base nos depoimentos que Litvinenko prestou aos autores –, há um episódio significativo: em 1996, quando ainda trabalhava na FSB, Litvinenko e seus colegas foram chamados a uma reunião com um dos diretores da agência, que apresentou ao grupo o livro de memórias de Pavel Sudoplatov, diretor do órgão de espionagem NKVD no tempo de Stalin (foi o homem que comandou o assassinato do líder comunista dissidente Leon Trotski, no México). "Este é o nosso modelo", dizia o diretor. Pouco depois, Litvinenko teria recebido a ordem de assassinar o magnata Boris Berezovski, de quem era próximo. Não cumpriu a ordem e denunciou o complô em uma entrevista na emissora de TV que então pertencia a Berezovski. A atitude custou-lhe o emprego e a liberdade – foi preso sob acusações fajutas de extorsão e roubo. Libertado, buscou o exílio, em 2000.

Embora a viúva do ex-agente apareça como co-autora do livro, Morte de um Dissidente é todo narrado em primeira pessoa pelo biólogo Alex Goldfarb, dissidente russo exilado nos Estados Unidos ainda nos tempos da União Soviética e ex-assessor do megainvestidor George Soros. Ele intermediou várias tentativas de negócios de Soros com Berezovski, e foi por meio desse que acabou conhecendo Litvinenko. Ajudou o ex-agente a conseguir asilo na Inglaterra e traduziu sua acusação final contra Putin para o inglês (o fato de a declaração não estar em russo foi usado pelos aliados de Putin para colocar em dúvida a legitimidade do documento). Morte de um Dissidente narra passo a passo a degeneração da democracia russa, do governo ambíguo mas ainda liberal de Boris Ieltsin ao recrudescimento autocrático promovido por Putin. Berezovski, embora seja tratado com condescendência excessiva no livro (Goldfarb hoje trabalha para o magnata), é um personagem exemplar dessa história. Como bom capitalista, era um entusiasta das privatizações conduzidas por Ieltsin. Mas cometeu o erro de flertar com Putin – que acabou determinando seu exílio e a renacionalização de sua cadeia de televisão (não existem mais emissoras independentes na Rússia – um modelo que Hugo Chávez está copiando na Venezuela).

Yuri Kadobnov/AFP
Atentado em Beslan: pretexto para mais autoritarismo

A Explosão da Rússia traz as denúncias mais incisivas contra Putin, e Morte de um Dissidente é a melhor narrativa dos meandros sujos da política russa. Mas a análise mais profunda do governo Putin está em Um Diário Russo. Com impressões registradas dia a dia, Anna – jornalista consagrada pelas denúncias de violações dos direitos humanos cometidas pelas tropas russas na Chechênia – descreve o ocaso da democracia a partir das eleições parlamentares do fim de 2003. Por meio de fraudes eleitorais e acordos de bastidores, Putin conseguiu extirpar os partidos democráticos e liberais da Duma, o Congresso russo. Na primeira sessão desse Parlamento submisso, o presidente fez um discurso revelador, no qual dizia que a Duma abandonara o "confronto político" em favor do "trabalho construtivo". "Todo debate é inútil", concluiu. No ano seguinte, ele usaria o terrível atentado na escola de Beslan como pretexto para mais medidas autoritárias. Passou a indicar os governadores de província, antes eleitos. Esse é o homem que, na semana passada, afirmou ser um democrata "puro" – e não só isso: o único democrata verdadeiro do mundo. Não houvesse sido brutalmente silenciada, Anna Politkovskaia teria algo ferino a dizer sobre essa declaração.

Arquivo do blog