Entrevista:O Estado inteligente

sábado, junho 16, 2007

O Passado, de Alan Pauls

O AMOR ZUMBI

A obsessão doentia de uma mulher por seu ex
impulsiona o belo romance do argentino Alan Pauls


Miguel Sanches Neto

VEJA TAMBÉM
Exclusivo on-line
Trecho do livro

Saudado por gente de peso, como Ricardo Piglia e Roberto Bolaño, como um dos maiores escritores latino-americanos vivos, o argentino Alan Pauls, de 48 anos, demorou a se decidir pelo título de seu quarto romance. Pensou em chamá-lo de A Mulher Zumbi, por causa da natureza fantasmagórica de Sofía, cujo amor doentio pelo tradutor Rímini, seu ex-namorado, impulsiona a narrativa. Considerou um título curto, Ex, até chegar ao simples e definitivo O Passado (tradução de Josely Vianna Baptista; Cosac Naify; 478 páginas; 55 reais). "O amor é uma torrente contínua", diz um dos personagens, e este também seria um bom título: Torrente Contínua. Trata-se, afinal, de um romanção que se lê compulsivamente. O Passado é cheio de lacunas, descontinuidades e mudanças de trajetória – mas, a essa força desagregadora, Alan Pauls opõe o poder da memória, que garante alguma constância onde tudo se desfaz rapidamente.

Divulgação
Alan Pauls: um artista que se mutila e um tradutor que esquece línguas


Muito bem arquitetada, a estrutura do livro envolve o leitor e o joga sempre à frente, ao longo das várias fases da vida de Rímini. Separado de Sofía depois de doze anos de amor, ele começa o livro como um tradutor solitário, tentando se desintoxicar da paixão e das drogas que consumia em excesso. Curado, torna-se um intérprete de palestras e se apaixona pela ciumenta Vera, que virá a morrer tragicamente. Rímini começa então a esquecer as línguas estrangeiras que eram sua ferramenta de trabalho. É nesse período que se reencontra com Carmen, amiga de faculdade. Os dois se casam e têm um filho, mas Sofía acaba provocando a traumática separação do casal. Rímini se faz professor de tênis e acaba amante de uma aluna rica.

Em cada uma dessas vidas, Rímini depara sempre com a sombra da amada, que o persegue como um espectro. Uma mórbida paixão comum mantém os dois ligados, mesmo depois do rompimento: a obra do pintor inglês (fictício) Jeremy Riltse, criador da sick art, uma estranha vanguarda que procura dar status artístico à doença. Depois de uma excursão à Europa para ver o artista, no tempo em que ainda eram gêmeos siameses, Rímini e Sofía passam a ser uma representação da própria lógica artística de Riltse. Enquanto o inglês colocava pedaços de seu corpo nas telas e sonhava ir mais fundo na automutilação em nome da arte, o casal fazia de seu amor doentio uma verdadeira obra, passando por contínuas experiências de doença, envelhecimento precoce e degradação física. O Passado parece estabelecer fronteiras entre livros muito diversos entre si – por exemplo, Em Busca do Tempo Perdido, do francês Marcel Proust, O Jogo da Amarelinha, do argentino Julio Cortázar, e O Amor nos Tempos do Cólera, do colombiano Gabriel García Márquez. E convida o leitor a se perder num território de obsessões perigosas, que só se tornam claras quando vistas pelas lentes deformadoras da arte.



O suicídio do artista guru

"Jeremy Riltse matou-se em Londres certa madrugada de 1995. Tinha 78 anos e nenhum herdeiro. Reconciliado com a própria celebridade, estava na etapa burguesa em que os artistas reivindicam seu direito à imobilidade, como gurus. Alguns poucos protegidos, em geral jovens e pobres, que usava como modelos para seus quadros, onde depois apareciam desfigurados em ridículas metamorfoses bestiais, amenizavam sua existência com prestações eróticas expeditas. Essas satisfações esporádicas nunca lhe criaram problemas; ao contrário, talvez estejam na origem das obras mais importantes de seus últimos anos; as mais importantes, não as melhores."

Trecho de O Passado

Arquivo do blog