Em apenas dez anos, a pecuária brasileira saiu
do século XVIII para liderar o mercado mundial
Julia Duailibi
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Negócios são o lubrificante natural da engrenagem capitalista. Alguns deles também funcionam como emblemas de novos ciclos tecnológicos, do declínio de companhias tradicionais e da ascensão de novos impérios econômicos. Foi assim em 2000, quando a America Online, uma empresa de internet e sem nenhuma tradição, comprou a Time Warner, gigante americana do setor de mídia, com décadas de história. A transação marcou o despertar da nova economia. Quatro anos mais tarde, a Lenovo, firma da China comunista, adquiriu a divisão de computadores pessoais da IBM, empresa americana pioneira em informática. Foi o símbolo da inserção definitiva dos chineses na economia globalizada. Na semana passada, uma companhia brasileira protagonizou uma aquisição de relevo semelhante. O frigorífico Friboi, empresa familiar nascida em Goiás, comprou a companhia americana Swift, com mais de 150 anos de história e um faturamento dez vezes maior. Com a transação, o frigorífico brasileiro passa a ser o maior abatedor de bois do planeta, e o Brasil consolida-se como o maior exportador de carne bovina do mundo.
Como o grupo Friboi chegou lá? Com um ambiente econômico estável, que favoreceu o planejamento, a obtenção de financiamento e a compra de maquinário, sem o que não há como enfrentar a concorrência internacional. Sem falar nas vantagens comparativas do Brasil, sobretudo a grande quantidade de pastos. Em menos de uma década, a participação do Brasil no comércio mundial de carne pulou de 5% para mais de 30%. Nada mau para um mercado ainda marcado pela informalidade, por uma vigilância sanitária precária e por um histórico de incompetência e intervenções governamentais. Na década de 90, a pecuária brasileira ainda usava técnicas do século XVIII. O gado levava cinco anos para ser abatido e a carne era de péssima qualidade. Na década de 80, durante um tabelamento de preços, os criadores deixaram de vender para os abatedouros, e o governo chegou a importar carne de Chernobyl, na Ucrânia, palco do maior acidente nuclear da história. Hoje o tempo de abate caiu para dois anos e as companhias têm liberdade de preços e capacidade de financiar-se no mercado de capitais – caso do frigorífico Friboi, a primeira empresa do setor a lançar ações, em março passado.
"O aumento da produtividade, as melhorias genéticas e a diminuição do tempo de engorda também ajudaram o Brasil a virar o jogo", diz o ex-ministro da Agricultura Marcus Vinicius Pratini de Moraes. O Brasil tem o maior rebanho comercial do planeta, com 198 milhões de cabeças, e é líder em exportações, com 4 bilhões de dólares. Aqui há abundância de mão-de-obra e terras baratas. O preço do boi, responsável por 60% dos gastos de frigoríficos, é metade daquele cobrado nos Estados Unidos. O setor vai tão bem que nem o câmbio atrapalha. Com o preço baixo da carne brasileira, os exportadores negociam aumentos em dólar. As vendas externas crescem a um ritmo de 20% ao ano e são responsáveis por um terço da produção do setor. O mundo passou a comprar o Brazilian Beef, e quem puxa as exportações é o consumo nos países emergentes, onde a renda cresce a taxas elevadas. Só a China responde por quase metade do crescimento das vendas globais. A carne brasileira está na mesa de mais de 100 países, como Madagáscar, Burkina Faso e Irã. Mas é a Rússia o principal importador: compra 30% de tudo o que vendemos.
Não apenas o Friboi tem ganhado terreno. Os grandes frigoríficos brasileiros são os mais lucrativos do mundo (veja quadro). Devido aos bons números, alguns, como o Marfrig e o Minerva, também planejam vender ações na bolsa de valores. "Há dez anos, a indústria brasileira era passível de compra. Todos esperavam que uma gigante americana engolisse uma empresa brasileira. Mas o setor reestruturou-se financeiramente, ganhando produtividade. Agora, somos nós que compramos", afirma Sergio De Zen, do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada da Esalq-USP. Com a compra da Swift, o frigorífico goiano, que já estava na Argentina, terá agora operações nos Estados Unidos, o maior mercado consumidor, e também na Austrália, importante produtor de gado premium e grande exportador de carne para o Japão. A nova empresa terá capacidade de abater 47.100 bois por dia, ou dois por segundo, o equivalente a aproximadamente um terço da demanda mundial. Um pulo e tanto para uma empresa que, há dez anos, flertava com a informalidade e vivia exclusivamente do mercado interno.
Seu modelo de administração? O pai e fundador do frigorífico, José Batista Sobrinho, o "Zé Mineiro", e seus três filhos homens decidiam o rumo dos negócios nos almoços de domingo. A virada veio em 1997, quando o frigorífico Friboi decidiu aproveitar a recém-conquistada estabilidade da economia e começou a exportar. Na terça-feira da semana passada, o grupo brasileiro, agora chamado de JBS (iniciais de seu fundador), selou a aquisição da Swift, a terceira maior empresa de produção de carne dos Estados Unidos. Uma trajetória quase impensável para uma empresa que nasceu nos anos 50 como um modesto açougue, em Anápolis, Goiás. Naquela época, o patriarca Zé Mineiro, hoje com 76 anos, começou a comprar e a vender boi nas ruas da cidade. Em 1953, abriu o primeiro açougue, o Casa de Carne Mineira. Chegou a levar carcaça de animais nas costas. A grande tacada veio da compra de um abatedouro nos arredores de Brasília, com o qual passou a fornecer carne às empreiteiras que trabalhavam na construção da capital. Abatia de 25 a trinta bois por dia.
Com a compra da Swift, por 1,4 bilhão de dólares, a companhia abriu caminho para vender carne in natura para os mercados americano e asiático, onde o produto brasileiro ainda sofre restrições sanitárias. A empresa disputou o negócio com outras cinco companhias americanas. Chegou a fazer duas propostas no intervalo de uma semana. A última delas foi feita por Joesley Batista e seu irmão Wesley, que foram pessoalmente ao Colorado, onde fica a sede da Swift. Na hora do acerto de contas, os americanos confessaram sua surpresa: "Eles achavam que a invasão viria da China. Mas veio de Formosa mesmo", brinca Joesley, presidente da empresa, num trocadilho entre o nome de Taiwan, em português, e a cidade brasileira onde está um dos primeiros matadouros da família Batista. Ainda há desafios à frente, como dirimir a grande informalidade que persiste no país e combater a febre aftosa – doença que atinge o gado e fecha sua exportação para alguns mercados. O frigorífico também lida com denúncias de práticas anticompetitivas. Em 2005, José Batista Junior, então presidente da empresa, foi envolvido em gravações que sinalizavam eventual participação em um esquema de cartel no mercado brasileiro de carnes. O processo, que está no Cade, ainda não foi julgado. Denúncias e desafios como esses são comuns a empresas familiares que ascendem ao patamar global. Seja como for, o frigorífico Friboi já é a mais nova multinacional brasileira, ao lado de gigantes como AmBev, Embraer e Gerdau. Que venham outras.
Montagem sobre fotos de Luigi Mamprin; Silvio Ferreira e Pedro Rubens |