Mariangela Hamu e Viviane Kulczynski
Já são 31 os dias de ocupação da reitoria da Universidade de São Paulo (USP). Há mais de duas semanas a Justiça determinou que a polícia cumpra imediatamente a ordem de reintegração de posse. Na quinta-feira, o governador José Serra fez esclarecimentos públicos, por meio de decreto declaratório publicado no Diário Oficial, de que nunca pretendeu ferir a autonomia universitária, principal acusação feita pelo movimento. Mas o impasse continua e a rebeldia universitária se expande para outros campi das três instituições de ensino superior estaduais paulistas.
Em assembléia encerrada na madrugada de sábado, os alunos grevistas da USP - numa maioria vinculada a micropartidos de esquerda radical, como o PC do B, o PSOL e o PSTU - decidiram manter o a invasão. E organizam eventos "culturais" para a semana que começa, num claro sinal de que não há previsão para reabrir negociação com o governo, embora esteja marcado para amanhã encontro com a reitora, Suely Vilela.
A seguir trechos da entrevista exclusiva concedida pelo governador José Serra ao Estado. Ele considera uma violência a ocupação e, isso sim, um ataque à autonomia universitária.
Qual era o principal objetivo com a criação da Secretária de Ensino Superior? O senhor imaginou que isso geraria tanta polêmica e culminaria com a publicação de um decreto declaratório?
A Secretaria de Ensino Superior não foi feita para substituir nem administrar nenhuma universidade, nem, muito menos, as três universidades públicas estaduais. Em São Paulo há perto de 40 universidades ou faculdades municipais, que também são públicas. Nem existem informações sistematizadas sobre elas. E há uma grande quantidade de universidades e faculdades privadas. O número de alunos das privadas deve ser umas seis vezes maior do que os alunos das públicas. A finalidade da secretaria é a de estabelecer e organizar as relações entre o governo e todo esse ensino superior, em benefício do desenvolvimento econômico e social do Estado e do maior acesso da população à universidade. É de ajudar na expansão com qualidade das oportunidades de ensino superior.
Mas de que maneira?
Organizando junto com as universidades públicas cursinhos gratuitos para algumas milhares de estudantes que venham da rede pública, com recursos extra vinculação. Ajudando na organização da futura universidade virtual, quando a transmissão digital de TV estiver implantada. Estimulando as universidades a organizarem mais colégios de aplicação, financiados pelo governo. A SES deverá ser importante para o debate e a proposta sobre um plano diretor para o ensino superior em São Paulo, que já começou a ser traçado. No artigo 2º do decreto que organizou a secretaria diz-se sem rodeios: 'As funções voltadas ao ensino superior serão exercidas em articulação e conjugação de esforços com as instituições envolvidas, observando-se sempre o respeito à autonomia e às características de cada universidade'. Poderia haver algo mais claro?
Não parece ter ficado claro. Foram muitas as acusações de ataque à autonomia, desde a publicação dos primeiros decretos.
Sim. Um eminente professor de Direito, que inicialmente apoiou a invasão, chegou a fazer a grande revelação de que eu preparei o ataque à autonomia das universidades antes de tomar posse, fazendo com que 'a maioria tucana na Assembléia Legislativa' aprovasse no fim do ano emenda constitucional que permite estruturar secretarias por decreto. Só que essa emenda apenas adaptou a Constituição Estadual à Constituição Federal, e foi apresentada por um deputado do PT e aprovada por unanimidade.
Mas o decreto declaratório não acabou esvaziando as atribuições da secretaria e tirando poderes do secretário José Aristodemo Pinotti?
Não, não esvaziou nenhuma função da secretaria. Mas acabou sendo necessário editá-lo por causa do obscurecimento que se produziu em relação às intenções do governo, desde o começo. No começo do ano, o governo contingenciou as despesas porque não tínhamos Orçamento. Nosso governo começou sem que a Assembléia Legislativa tivesse votado o Orçamento de 2007. Em relação às universidades, o contingenciamento foi de aproximadamente 1,5%. Mas espalhou-se que era de 15%. A partir daí, a desinformação galopou. O contingenciamento foi eliminado depois da aprovação da Lei Orçamentária pela Assembléia em março. Mas a onda continuou. A ela se superpôs outra onda, causada pelo decreto que estabeleceu a necessidade do registro em tempo real das despesas do Executivo, das universidades, do Ministério Público, da Justiça e do Legislativo, sem que estas instituições, que são poderes independentes, manifestassem o menor desconforto com a medida.
Outra polêmica foi em torno de contratação de pessoal. Um dos decretos proibia.
É uma afirmação falsa por três motivos: primeiro porque o decreto não incluía as universidades; segundo porque, se incluísse, não envolveria professores, pois o decreto procurou congelar os chamados "cargos de confiança" dentro da administração, medida de austeridade, e os professores não se enquadram nessa categoria.Terceiro, porque as universidades continuaram contratando professores ao longo deste ano. É normalíssimo na administração acontecerem desentendimentos sobre disposições legais. Tão normalíssimo quanto seu esclarecimento. Isto faz parte do cotidiano de um governo. Por isso, todas as dúvidas foram rápida e reiteradamente esclarecidas. Mas como as desinformações dentro e fora das universidades continuaram, envolvendo inclusive muitas pessoas de boa-fé, aceitamos a sugestão dos reitores de esclarecer de novo o que já havia sido esclarecido.
E sobre as acusações de que os decretos também feriam a autonomia em pesquisas feitas dentro das universidades?
Em São Paulo, 60% das pesquisas são paga pelo governo do Estado. No resto no Brasil, essa proporção cai à metade. A Fapesp é um modelo. Recebe 1% do ICMS. Quem garantiu sua preservação foi o Fernando Henrique e eu próprio, na Constituinte, pois a nova Constituição proibia vinculações que não estivessem previstas no seu texto. Antes era 0,5%. Ele me alertou e eu adotei a emenda, como relator. Outra emenda do Aloysio Nunes, atual chefe da Casa Civil, quando era deputado estadual, dobrou esse porcentual. A Fapesp funciona muito bem e de forma autônoma. Ninguém mete o bico no seu trabalho. Financia pesquisa pura, básica e aplicada. Desde o ano passado, está organizando uma pesquisa que envolve o etanol. Há algo de errado nisso? Claro que não.
Mas existe ainda a questão de as faculdades de tecnologia terem ficado sob a responsabilidade de outra secretaria. Por que essa decisão?
Uma interpretação alucinada considerou gravíssimo elas terem permanecido na Secretaria de Desenvolvimento e não terem migrado para a Secretaria de Ensino Superior. Acontece que o Centro Paula Souza tem umas seis vezes mais alunos de ensino médio e técnico (ETECs), de nível colegial, digamos, do que os alunos das Fatecs. E não teria sentido quebrar a fundação em dois. Além disso, temos os conselhos de governo, onde todas a áreas afins se integram.
O movimento dos estudantes começou com cerca de 300 alunos, mas ganhou força e novas adesões ao longo dos dias. Houve falha na condução das negociações?
A ocupação representa uma violência. Impedir uma reitora de exercer sua função é uma violência. Piquetes que coagem e ameaçam professores que querem dar aulas é uma violência. Isso tudo, aliás, é um enorme desrespeito à autonomia universitária. Olhe, o povo de São Paulo paga mais de R$ 4 bilhões (uns R$ 4,2 bilhões neste ano) para manter as universidades públicas e possibilitar que os estudantes possam ter um ensino superior público e gratuito de qualidade. É muito dinheiro. Até em respeito à população que trabalha e paga os impostos, quem entra na USP, na Unicamp, na Unesp, tem de se esforçar, tem de aproveitar a oportunidade que recebeu. A grande maioria dos estudantes, que sabe quanto é difícil ingressar na USP e que sabe a oportunidade que está tendo de estudar de graça na melhor universidade do País, deveria cobrar dos invasores a desocupação da reitoria e a retomada do funcionamento normal da universidade. É um direito deles. Sim, a USP é um espaço público. E os invasores pretendem privatizá-lo.
O senhor foi presidente da UNE na época da ditadura. Qual o peso desse passado nas decisões que o senhor tem tomado em relação ao movimento dos estudantes? Isso estaria ligado com o tempo que se passou do início da invasão até a publicação do decreto?
A inquietação, a energia e o idealismo são parecidos. A despolitização, no entanto, hoje é maior. Isso amplia as possibilidades de manipulação política. As condições em que fui dirigente estudantil não se reproduzem hoje. Felizmente, os estudantes hoje podem se manifestar sem correr qualquer risco. O Brasil experimenta a vigência plena do Estado de Direito. E todos devemos respeitá-lo. Claro que eu levo em conta minha experiência como líder estudantil. Do mesmo modo que a minha experiência como professor universitário durante o exílio, no Chile e nos EUA, e depois na Unicamp. E também minha experiência como secretário do Montoro, deputado, senador, ministro e prefeito. E acima de tudo minha responsabilidade como governador dos 40 milhões de paulistas. Felizmente, eu, como governador, não posso fazer tudo o que quero. Ninguém pode. Isso só é possível numa ditadura. A experiência que me é relevante é a de quem sempre exerceu cargos públicos segundo as regras da democracia representativa e enfrentou condenação e exílio na luta para defendê-la.