Entrevista:O Estado inteligente

domingo, junho 03, 2007

Daniel Piza

Vaca profana


Gautama, leio, significa vaca sagrada. Que seja o nome de uma empreiteira de um sujeito chamado Zuleido Veras é apenas mais uma prova de que os ficcionistas brasileiros vão sempre perder a competição com a realidade. Acho ótimo que essas histórias sejam reveladas e que a PF procure atuar de modo suprapartidário. Mas há uma hipocrisia em tudo isso que é inegável. Qualquer pessoa com noção crítica sabe que o Estado é, na verdade, a vaca profana do sistema de poder brasileiro: em suas tetas se dependuram políticos, servidores, empresários, lobistas, sindicatos e ONGs, interessados apenas em seu próprio crescimento, muito mais do que em prestar serviços à sociedade que os sustenta. É preciso dizer com todas as letras que há muito mais empreiteiros, de abrangência muito maior, fazendo isso todo os dias e noites no Brasil. Rara é a licitação pública que não tenha sido fraudada ou viciada. Repito: rara é a licitação pública que não tenha sido fraudada ou viciada. Elas costumam ser um jogo de cartas marcadas, cujo perdedor somos nós, os contribuintes. Essa Navalha não vai fundo.

Tanto é que a Gautama já tinha sido apontada há alguns anos em relatórios dos tribunais de contas, que, politizados também, não são ouvidos. Mesmo o método midiático da PF - com excessos, sim, demonstráveis pelos vazamentos - termina menos frutífero do que poderia ser, já que a Justiça é lenta e falha e termina ratificando a impunidade. Além disso, o governo Lula faz uso desse noticiário para alegar combate à corrupção, que afinal seria um problema histórico do Brasil e não específico desse governo, apesar de mensaleiros, sanguessugas, aloprados e outros personagens - muitos dos quais não terminaram nas algemas da PF e muito menos atrás das grades. Não por acaso, na entrevista coletiva do dia 15, não fizeram ao presidente nem sequer uma pergunta sobre corrupção. É como se ele não fosse responsável por um ministério com Silas Rondeau - que caiu, mas não se preocupem porque o PMDB já indicou outro para o lugar - e por uma base parlamentar costurada com esse partido durante a campanha eleitoral, assim como tinha feito com PL e PTB no primeiro mandato. A questão não é se o governo Lula é menos ou mais corrupto do que os outros; a questão é que a corrupção tem grassado forte durante o governo Lula.

EUROPA, EUROPA

Cheguei a Paris dois dias depois da vitória de Nicolas Sarkozy sobre Ségolène Royal. O voto nele foi em grande parte motivado por sua mensagem de segurança e nacionalismo, combinada a algumas propostas na moda como as ambientalistas. Mas o discurso econômico da dita “esquerda” francesa continua atrasado, ignorante dos custos da burocracia paternalista; enquanto isso, Alemanha e Inglaterra recuperam o dinamismo. Por falar na Inglaterra, Tony Blair anunciou que deixa o poder neste mês. O país melhorou também na educação e na saúde e houve ainda os acordos de independência com Irlanda e Escócia. Nesses aspectos, a “terceira via” funcionou. Mas Blair botou tudo em segundo plano ao apoiar Bush em sua guerra missionária. De Sarkozy, aliás, dizem ser um Blair da direita. O receio, no entanto, é que vire um Berlusconi do centro...

Paris? Se a música é a inveja das outras artes, Paris é a inveja das outras cidades. Combina como nenhuma as grandes perspectivas e os pequenos achados, o exterior e o interior, a ordem e o agito. Paris é sinfonia e canção.

DE LA MUSIQUE (1)

A comemoração dos 40 anos do disco Sargent Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, ganhou especiais em muitas publicações, inclusive neste jornal. Já é trivial dizer que o segredo do grupo era a parceria-rivalidade entre John Lennon e Paul McCartney, entre a atitude verbal do primeiro e o domínio musical do segundo, endossada pelo fato de que Paul também sabia fazer letra e John também sabia fazer música. Mas foi sob a batuta de George Martin que ambos, em vez de deitarem no conforto da enorme fama, puderam dar saltos mais ambiciosos, para mim representados em especial pela canção A Day in the Life. O disco todo mistura influências de Lewis Carroll (cujo Alice no País das Maravilhas é uma sátira bem inglesa à Inglaterra), poesia surrealista, rebeldia beatnik e arte pop, amarradas em harmonias e arranjos sofisticados que combinam o descontínuo e o melódico. Infelizmente, depois deles, o sucesso passou a ser razão para o conformismo.

DE LA MUSIQUE (2)

Estava em grande destaque no saguão da Virgin, em Paris, ao lado dos novos CDs de Björk ou Mika: Rostropovitch - Le Violoncelle du Siècle. É uma caixa com três discos que a EMI acaba de lançar em homenagem ao violoncelista russo morto recentemente. De Bach a Shostakovitch, passando por Brahms, Dvorak, Britten e por Villa-Lobos (Bachianas 1), são 222 minutos de música magna.

SENSO E SENSIBILIDADE

Outra data lembrada foram os cem anos de Les Demoiselles d’Avignon, de Picasso, tela que me fascina tanto que escrevi um romance juvenil sobre ela. O quadro tem um movimento - circular, de dentro para fora e vice-versa, como numa espiral ambígua de desafio e sedução - que nos prende em sua intensidade; ao mesmo tempo, é harmônico, na composição e nas cores, e prazeroso ao primeiro olhar. Revisitei o Museu Picasso, no charmoso Marais, que está com um andar dedicado apenas ao tema da Carmen (de Mérimée e Bizet) em sua obra, e ao final saí com a mesma sensação das outras duas vezes, algo semelhante ao que Messalina descreveu: “Cansado, sim. Saciado, nunca.”

Menos lembrado será o centenário da publicação de A Educação de Henry Adams. O paralelo, aliás, poderia dar belo ensaio, caso esta arte pudesse ser praticada sistematicamente no Brasil. O americano Henry Adams, em sua autobiografia em terceira pessoa, está mais próximo da sensibilidade do século 19; o espanhol radicado na França Picasso, no mesmo ano, inaugura o século 20, que viria a ser chamado de “século americano”. Adams lamenta que sua formação moral e intelectual não tenha sido adequada para os tempos dinâmicos da industrialização e urbanização. Ao mesmo tempo, em capítulos como Silêncio, em seu estilo arguto e refinado, antevê angústias bem modernas. Eis o segredo.

RODAPÉ (1)

Visitei a nova Livraria Cultura rapidamente, na noite da inauguração. O espaço é muito amplo e sua existência fará muito bem para o Conjunto Nacional. Ao mesmo tempo, não tive aquela sensação chata de “megastore”, de supermercado de livros, sem personalidade. No terceiro andar há um teatro, sob direção de Dan Stulbach, e do outro lado um ambiente fechado com vidro para CDs de jazz e clássicos e livros sobre o tema. A livraria, meu primeiro oásis para compra de importados lá no início dos anos 80, soube se reinventar. Com ela e a nova Livraria da Vila, na Lorena, já não podemos reclamar muito.

RODAPÉ (2)

Minhas leituras de férias não foram muito felizes. Uma Noite no Majestic, de Richard Davenport-Hines (Record), foi resenhado na imprensa brasileira como um grande livro. Mas não é. Tem apenas um capítulo sobre o célebre jantar dado por Sidney Schiff para Proust, Joyce, Picasso, Stravinski e Diaghilev durante uma festa depois do balé do qual participaram os três últimos. Nada conta de novo. O encontro esperado entre Proust e Joyce tem muitas versões, mas basicamente um não foi com a fuça do outro; o burguês afetado e o irlandês bêbado só tinham em comum o gênio literário, e não há problema algum nisso. Já no capítulo seguinte o livro se converte numa biografia de Proust, também sem novidades (é muito melhor ler Georges Painter, Jean-Yves Tadié ou Pietro Citati), e com bobagens como a de dizer que os casos amorosos com mulheres nos romances de Proust eram baseados em seus relacionamentos homossexuais.

Li também Calor, de Bill Bufford (Companhia das letras), do qual tinha lido extratos na revista The New Yorker, em que Bufford é crítico gastronômico. Ele era editor de ficção e autor de livros como Entre os Vândalos, reportagem sobre os hooligans, até que decidiu trabalhar na cozinha do Mario, famoso restaurante italiano de Nova York. Ele narra os sofrimentos e prazeres desse trabalho, mas o livro, que se alonga demais, cresce quando ele parte para a Itália a fim de trabalhar num açougue na Florença e dominar a cozinha renascentista, porque aqui coloca a culinária em seu caldo cultural.

Decepção na ficção foi o novo romance de Don DeLillo, Falling Man, sobre uma família que sobrevive ao 11/9. O melhor de DeLillo (Libra, Ruído Branco) é a força de seus personagens em contraste com um período histórico real, mas aqui é tudo aguado, despropositado, emotivo demais, como se o autor tivesse sentido obrigação de abordar o tema.

POR QUE NÃO ME UFANO

Daiane dos Santos, de pele negra, tem metade da carga genética oriunda da Europa. Não há, como se vê, classificação mais imbecil da humanidade do que a racial. Para o que quer que seja.

E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br

Sote: www.danielpiza.com.br

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