Ban Ki-moon, diplomata de profissão e antigo ministro das Relações Exteriores e do Comércio da Coréia do Sul, que teve na sua eleição o apoio da China e dos EUA, assumiu neste mês de janeiro o cargo de secretário-geral da ONU. Sucede ao ganense Kofi Annan, que cumpriu dois mandatos e exerceu o cargo de 1997 a 2006. Num cenário internacional de tensões difusas e incertezas crescentes, “o mundo não dá a ninguém inocência nem garantia”, para me valer das palavras de Guimarães Rosa. Daí a pertinência de examinar as funções e o papel que pode exercer o secretário-geral no plano mundial.
A ONU é uma organização internacional constituída e integrada por Estados com os quais não se confunde. Tem personalidade jurídica própria e atua por meio de um processo decisório coletivo regido por normas. Por isso a ONU não é este ou aquele Estado membro, tampouco se caracterizando como a soma de todos os seus integrantes. Institucionalmente, é um tertius. Este terceiro não está acima dos Estados membros, ou seja, não é um governo dotado de poder. É uma instância de abrangência universal, de interposição e intermediação entre os Estados. Esta instância se insere num sistema interestatal no âmbito do qual o princípio de igualdade formal das soberanias e as normas do Direito Internacional convivem com as desigualdades reais e suas conseqüências.
A ONU é, assim, nos termos da Carta, um centro destinado a harmonizar a ação das nações para a consecução de objetivos comuns. Estes são: manter a paz e a segurança internacionais; desenvolver relações amistosas entre as nações; conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social ou humanitário.
A razão de ser da ONU como um centro harmonizador da conduta dos Estados deriva do fato de que, num mundo interdependente, ainda que assimétrico, a paz e o bem-estar das nações só podem ser alcançados pela ação conjunta cooperativa, no contexto de um sistema multilateral de vocação universal. Esta foi a visão que inspirou a criação da ONU, que retém plena atualidade, nesta era de globalização na qual um mundo em rede “internaliza-se” cotidianamente na vida dos países e das sociedades, para o bem e para o mal.
Para funcionar como centro de um processo decisório coletivo no trato dos amplos propósitos acima mencionados a ONU dispõe de órgãos. Entre os principais estão a Assembléia-Geral e o Conselho de Segurança, que são de natureza intergovernamental e no espaço dos quais se dá significativa parte da dinâmica do multilateralismo diplomático contemporâneo. Está também um Secretariado, chefiado pelo secretário-geral, cujas atribuições são de caráter exclusivamente internacional. Por este motivo a ONU, como terceiro, distinto dos seus membros, que cumpre uma função pública internacional, tem na figura do secretário-geral a corporificação da sua identidade.
O secretário-geral é um agente administrativo e um ator político. Suas funções administrativas na chefia do Secretariado envolvem atividades logísticas, jurídicas e de informação, voltadas para o apoio à ONU e a seus órgãos. Não são simples estas atividades. Basta lembrar que a execução de decisões coletivas pode ser complexa. É o caso da gestão das 18 operações de paz em andamento, que mobilizam mais de 75 mil militares e são distintas nas suas dimensões e nos desafios que enfrentam em diferentes contextos regionais e nacionais.
O secretário-geral, no entanto, não é apenas um executivo responsável por atividades administrativas. Tem atribuições políticas provenientes de um poder de iniciativa previsto na Carta em relação ao Conselho de Segurança: o de chamar a atenção “para qualquer assunto que em sua opinião possa ameaçar a manutenção da paz e a segurança internacional”. Esta atribuição foi consolidada pela prática e está consagrada nos regimentos internos dos órgãos intergovernamentais da ONU.
O fundamento deste poder de iniciativa é o de fazer da ONU um tertius ativo no encaminhamento dos problemas internacionais. Entre eles, hoje, os conflitos regionais, a irradiação da violência no Oriente Médio, o terrorismo, as tensões da nuclearização do Irã e da Coréia do Norte, a intensificação dos desastres ambientais, o crescente número de refugiados, a fome e a pobreza, o desrespeito aos direitos humanos.
Dag Hammarskjöld, o sueco que foi o segundo secretário-geral (1953-1961), dizia que a missão da ONU não era a de elevar a humanidade ao céu, mas salvá-la do inferno. Daí a relevância, no exercício de uma função pública internacional, do papel político do secretário-geral, voltado para elaborar e construir propostas de ação para apreciação e aprovação dos Estados membros. Foi nesta linha que atuou Kofi Annan.
Qual é a margem de manobra de que dispõe Ban Ki-moon para exercer este papel? Ele está evidentemente condicionado pela disposição ao agir conjunto dos Estados membros. Os desafios do presente são claramente insuscetíveis de encaminhamento unilateral. Por isso são uma instigação na busca da sabedoria do esforço coletivo. Neste contexto, Ban Ki-moon vê a sua função como a de “um harmonizador e um construtor de pontes”. Para exercer com sucesso este construtivo papel ele, porque é um terceiro sem poder, precisa construir sua autoridade. Esta pode ser definida como palavra respeitada, tida como prioritária por seus destinatários, pois autoridade é menos que um comando, mas é mais que um conselho apropriado ou uma exortação eloqüente.
O tempo dirá se o novo secretário-geral, valendo-se dos instrumentos do cargo e do seu papel legitimador na vida internacional, da sua capacidade de comunicar-se, da sua informação e experiência, da sua habilidade diplomática, da sua imparcialidade, construirá ou não a sua autoridade. Poderá ajudá-lo a observação do humanista florentino Guiciardini, o contemporâneo politicamente mais bem-sucedido de Maquiavel: “Entre os homens, usualmente, pode muito mais a esperança do que o medo.”