A primeira, há três anos, foi política e gerou
o caos. A segunda foi para valer e seus
efeitos mais fortes ainda virão
Diogo Schelp
Fotos Bassim Daham/AP e Nabil Al-Jurani/AP | |
Acima, funeral de Saddam em sua aldeia natal. Abaixo, à esquerda, xiitas comemoram e, à direita, sunitas lamentam | |
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O que mais pode dar errado no Iraque? A execução de Saddam Hussein deveria ter sido o ato final do julgamento de uma tirania por uma sociedade livre. Tivesse sido assim, teria ocorrido uma vitória de relações públicas para Washington, ao demonstrar que os Estados Unidos estão tendo algum sucesso em seu projeto de implantar no país a democracia e padrões civilizados de justiça. A realidade iraquiana mais uma vez se recusou a se encaixar no cenário imaginado pela Casa Branca. A execução – como se pode ver em sórdidos vídeos gravados nos momentos finais do ditador – nem de longe pareceu um ato de justiça desapaixonada, como era de desejar. Foi muito mais um linchamento cruel e primitivo, bem ao estilo dos ódios tribais no Oriente Médio. Assim, o que deveria ter sido um momento de catarse para o Iraque só fez aumentar a divisão sectária do país. O desastre, na verdade, era inevitável desde que, em lugar de julgarem eles próprios o ditador ou de convocarem um tribunal internacional para a tarefa, os americanos decidiram entregá-lo ao governo iraquiano. Este é dominado pelos xiitas e pelos curdos – exatamente as maiores vítimas da ditadura de Saddam –, cujo senso de justiça não ultrapassa o antigo e objetivo olho por olho, dente por dente.
Saddam foi condenado à forca pela morte de 148 xiitas, moradores de uma aldeia na qual o ditador escapou de um atentado em 1982. Nuri Kamal al-Maliki, o atual primeiro-ministro do Iraque, que rejeitou o pedido americano para adiar a execução, não apenas é xiita, mas também militou toda a sua vida no grupo que organizou o fracassado atentado de 1982. Raras vezes os momentos finais de um homem foram vistos com tantos detalhes. O vídeo da execução foi feito por uma das 25 pessoas presentes e distribuído pela internet. Mostra Saddam sendo provocado e insultado enquanto carrascos encapuzados colocam a corda em seu pescoço. "Moqtada! Moqtada!", gritou uma voz. Moqtada al-Sadr, cujo pai, um clérigo xiita, foi morto por ordem de Saddam, é o chefe de uma milícia de 60.000 homens responsável pelo assassinato em massa de sunitas. "Para o inferno!", berra outra voz não identificada. "É assim que vocês demonstram a coragem dos árabes?", pergunta o condenado. Novamente é mandado para o inferno. "Para o inferno que é o Iraque?", retruca Saddam.
O promotor público que acompanhava o cumprimento da sentença ainda tentou colocar ordem no recinto: "Por favor, parem! Este homem está sendo executado". De nada adiantou. "Viva Mohamed Bakir al-Sadr", berra outra voz. Esse é o tio de Moqtada, também assassinado a mando de Saddam, em 1980. Nesse clima de exaltada indignidade, Saddam comporta-se com dignidade e aparenta tranqüilidade. Recusa-se a cobrir o rosto com um capuz, mas aceita que um dos carrascos proteja seu pescoço com uma echarpe. O uso de um pano entre a corda e o pescoço é para evitar cortes e sangramentos durante o enforcamento. Os carrascos nem sequer esperaram Saddam terminar uma oração para abrir o alçapão sob seus pés. A sala é tomada por exclamações de júbilo. "O que deveria ser um ato de justiça estatal tornou-se um gesto de vingança xiita", disse a VEJA o inglês Chris Doyle, diretor do Conselho para o Avanço do Entendimento Árabe-Britânico, em Londres.
As circunstâncias da morte não devem obscurecer o fato de que Saddam Hussein foi um assassino em massa, cuja crueldade e sede de poder estiveram à altura das demonstradas por Stalin, Mao Tsé-tung e Adolf Hitler. O ar sereno e a cabeça erguida do condenado, em meio aos insultos proferidos pelos carrascos, ajudaram a dar forma ao último desejo de Saddam: o de passar para a história como um mártir, e não como o assassino cruel que realmente foi. A minoria sunita, que nos tempos de Saddam formava a elite política do país, vê na maneira como o tirano foi executado uma prova do revanchismo dos xiitas, atualmente predominantes no governo iraquiano. Não que todos os sunitas gostassem de Saddam. Ao contrário. A repressão de seu regime não se restringiu aos curdos e xiitas. Mas uma seqüência de fatos desviou o foco dos crimes de Saddam, razão pela qual ele foi enforcado, para as rixas internas do Iraque. "Teria sido melhor esperar para julgá-lo também pela morte de sunitas e pelo genocídio de curdos iraquianos – isso daria mais credibilidade à sentença", disse a VEJA o cientista político iraniano naturalizado americano Vali Nasr, autor do livro O Renascimento Xiita.
Estima-se que, somando-se as vítimas da repressão de Saddam e as das duas guerras que o ditador iniciou – contra o Irã, em 1980, e no Kuwait, em 1990 –, mais de meio milhão de pessoas tenham morrido no Iraque, muitas delas sunitas. O momento da execução – durante o feriado de Eid al-Adha – foi escolhido especialmente para criar problemas. A data, uma das mais importantes para os sunitas, marca o fim da peregrinação anual a Meca e está ligada ao sentimento de clemência. "Depois de todos esses fatos desastrosos envolvendo a execução de Saddam, os sunitas sentem que não podem confiar no governo como um representante de todos os iraquianos", disse a VEJA a inglesa Rosemary Hollis, especialista em relações internacionais da Chatham House, em Londres. O conflito sectário no Iraque já atingiu as proporções de guerra civil. A rivalidade entre as três facções étnicas ou religiosas principais do país é uma herança da ditadura de Saddam Hussein que a ocupação americana ajudou a catalisar. Quando invadiram o Iraque, os ideólogos neocons de George W. Bush acreditavam que os iraquianos ansiavam por uma democracia ao estilo ocidental. Sabe-se agora que o conceito é um pouco diferente naquelas terras desérticas: sunitas, xiitas e curdos vêem a liberdade como uma oportunidade de ficar livres uns dos outros. O problema do Iraque e dos Estados Unidos não era mais o de livrar-se de Saddam. Deposto em 2003 e capturado no ano seguinte de forma ignóbil, escondido num buraco, o ex-ditador era uma carta fora do baralho político. Morto do jeito indigno que foi, passou ao plano superior do imaginário muçulmano, aquele habitado pelos mártires. É fato conhecido que é mais fácil derrubar um homem do que um mito.
Com reportagem de Denise DweckFotos Jerome Delay/AP e Iraqi TV/AP |